Conheci O Rappa em 2003. Antes apenas ouvia falar e pensava ser música de maloqueiro. Em 2003 ouvi as duas canções que me fizeram entender a banda como alguns de nossos profetas modernos: Miséria S.A. & Minha alma (A paz que eu não quero). Hoje falarei sobre a segunda.
Certamente esse clipe é o melhor clipe que eu já assisti na vida, tendo inclusive uma sequência de imagens reais ao mostrar a execução do garoto pela PM. É um soco no estomago. Um direto na face. Uma denúncia contra mim, contra você e contra nossa (des)humanidade que comporta a violência como elemento natural e absoluto de nossas vivências.
A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz
Não é paz, é medo!
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz
Não é paz, é medo!
As vezes eu falo com a vida,
As vezes é ela quem diz:
As vezes é ela quem diz:
“Qual a paz que eu não quero conservar,
Prá tentar ser feliz?”
Prá tentar ser feliz?”
As grades do condomínio
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão
Me abrace e me dê um beijo,
Faça um filho comigo!
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!
Faça um filho comigo!
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!
Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido…
É pela paz que eu não quero seguir admitindo
(lamentavelmente, o clipe só pode ser assistido no Youtube, neste link)
Neste vídeo coagido…
É pela paz que eu não quero seguir admitindo
(lamentavelmente, o clipe só pode ser assistido no Youtube, neste link)
Essa canção tem, talvez, o verso mais duro que eu já ouvi na música brasileira: Paz sem voz é medo. Se alguma coisa me empurrou definitivamente para a militância política e social, através da defesa de direitos humanos e posteriormente em partido político, foi ouvir, cantar esta música e ver esse clipe. Pela paz que eu não quero seguir admitindo.
Não posso seguir admitindo a paz de uma sociedade violenta que reclama de seus mortos e de suas grades, mas festeja a morte de um ser humano, qualquer um, como se um de nós pudesse ter o direito de definir quem tem direito à vida. Nem o bandido que atira em minha família tem esse direito, muito menos uma turba insandecida que lincha um pé-rapado que rouba um celular ou uma carteira. Nem eu tenho o direito de definir a vida de ninguém, nem o policial que executa uma criança bandida ou um criminoso adulto. Sob aplausos dessa sociedade hipócrita – que diz valorizar a vida mas apenas para homens de bens.
O resultado dessa equação funesta é um país que cada dia mais mata seus jovens, homens, negros. Ao que o resto da sociedade aplaude. Bandido bom não é bandido morto – bandido bom é bandido recuperado.
A sociedade que aplaude o tiro do policial-bandido no assaltante desarmado é a mesma que protege seus filhos que, alcoolizados ou não, jogam um carro de luxo contra uma parede e matam trabalhadores pobres – inominados. Seus filhos não são bandidos, criminosos. São crianças, coitadas e irresponsáveis.
Nas nossas periferias, paz é sempre sem voz. Nunca ouviremos nos grandes meios de comunicação a voz dos que foram torturados, extorquidos, violentados, assassinados na “bem sucedida” tomada do Complexo do Alemão. Nunca ouviremos as histórias dos homens e mulheres que não fugiram ou sumiram – foram sumidos e silenciados pela polícia ou pelo tráfico. Paz sem voz é medo.
Nós, classe média, preferimos nos enclausurar em nosso medo. Cercado por arames e porteiros eletrônicos. Vidros fechados em nossos carros. Não nos solidarizamos por nada nem com ninguém. Não temos compaixão pelas pessoas que dormem nas calçadas a poucos metros de nós. Tememos que, drogados, nos agridam. E não percebemos a agressão que fazemos a eles – esquecendo de que somos, nós mesmos e eles, filhos do mesmo gênero humano. Para nós, bandidos, marginais, marginalizados – ou aquele menino executado diante da câmera – são não-pessoas.
Uma enorme geração de não-pessoas – desde o ASG que limpa nossa mesa no shopping até a senhorinha que nos alcança na lanchonete, vendendo trufas acompanhada do filho. À meia-noite.
Uma enorme geração de não-pessoas que não nos comove mais. Estamos em paz. Uma paz silenciosa. Comprada com drogas inúteis. Uma paz que traduz nosso próprio medo. Por nós e pelos outros.
Comentários