Quando os irmãos se matam

O mito bíblico da criação, na tradição javista, conta-nos o caso de Caim e Abel.  É um relato cheio de lacunas intransponíveis para os nossos dias.  Somos leitores que gostariam de mais detalhes.  Mas não teremos.
Deus se agradou, por algum motivo que é impossível desprender a partir do texto, do sacrifício apresentado Abel e rejeitou o de seu irmão Caim.  A tradição aponta várias tentativas de explicar essa escolha, mas nenhuma delas aparece no texto (ao menos de maneira direta e clara).  Simplesmente Caim foi rejeitado por Deus e, com raiva e inveja, matou seu irmão.  Para a tradição bíblica, o primeiro homicídio.  Esse não é só um relato de morte.  Há graça ali: Deus marca Caim e sua marca não é, ao contrário do que se diz, uma marca de condenação, mas de salvação.  Deus está protegendo Caim de ser morto por haver matado seu irmão.  Dois irmãos que se tornaram inimigos.

O javista gostava de contar de inimizades entre irmãos.  Mais adiante, ainda no Gênesis, é ele que faz entrar em cena Esaú e Jacó.  O segundo nasceu agarrado no pé do irmão Esaú, o primogênito.  Mais velhos, Jacó rouba os direitos de primogenitura de Esaú.  Jacó foge e passa duas décadas pelo menos sem ver seu irmão.
Se eu procuro relatos assimna ficção fora Bíblia, eu vejo, por exemplo, a briga entre Jacob e o homem de preto, linha de orientação de Lost.
Em todas essas histórias e, provavelmente, na nossa vida diária, vamos perceber que os motivos que levam ao afastamento e ao conflito entre irmãos são mais ou menos os mesmos.  Inveja do que o outro possui, orgulho do que possui.  Todos esses irmãos querem tirar algo muito importante daqueles com quem brigam.  Caim matou Abel porque queria o favor de Deus que veio sobre o irmão.  Jacó roubou os direitos de primeiro filho de Esaú.  O homem de preto quer o poder e quer poder sair da ilha.  E tantas outras histórias em que irmãos não se toleram, se invejam e, um dia, de surpresa, se matam.
É preciso muita coragem aos irmãos para divergirem sem levar a uma guerra que, sem dúvida, é mais comum do que se gostaria.  E muitas vezes os problemas entre irmãos não são apenas pessoais, familiares e privados, mas terminam tendo impacto público e social.
É só lembrar os olhos de Pedro Collor acusando o irmão presidente na capa de uma revista.  É só lembrar, em Natal, de momentos como a campanha municipal de 1992 em que dois irmãos gêmeos - o deputado Henrique Alves e Ana Catarina - disputaram um contra o outro e ambos perderam a eleição para prefeito de Natal.
Desentedimentos entre irmãos não são apenas momentos de morte e traição - talvez convertidos em assassinatos de reputação e ofensa gratuita, convertendo o seu irmão com as mais sórdidas informações nos espaços públicos dos dias de hoje.
Uma profunda briga entre irmãos, em público, tende a ser mais vergonhosa e tende a um desgaste de imagem, mas especialmente daquele que, de arrogante que seja, não dá ouvidos ao bom senso e prefere pôr fim a vida do irmão - senão de forma literal como Abel, ao menos de uma forma simbólica e discursiva diante da opinião pública.  Destrutiva para diversos espaços e, principalmente, para a própria história pessoal dos sujeitos, sua vida e seu futuro.

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