Londres em chamas: Justiça britânica endurece e criminaliza protestos

Por Marcelo Justo
Na Carta Maior

Em Londres, um homem sem antecedentes penais, que roubou garrafas d’água no valor de 4 euros, foi condenado a seis meses. Em uma sociedade desconcertada pelos piores distúrbios desde o pós-guerra, os juízes parecem decididos a ditar sentenças draconianas. Segundo os críticos, a justiça britânica está perdendo o rumo com sentenças que tem uma desproporção absoluta entre delito e castigo. A reportagem é de Marcelo Justo, direto de Londres.
Em Chester, noroeste da Inglaterra, dois jovens de 20 e 22 anos que convocaram seus amigos pelo Facebook para se juntarem aos distúrbios – sem que ninguém seguisse a convocação – foram sentenciados a quatro anos de prisão cada um. Em Londres, um homem sem antecedentes penais, que roubou garrafas d’água no valor de 4 euros, foi condenado a seis meses. Em uma sociedade desconcertada pelos piores distúrbios desde o pós-guerra, os juízes parecem decididos a ditar sentenças draconianas. Segundo os críticos, a justiça britânica está perdendo o rumo com sentenças que tem uma desproporção absoluta entre delito e castigo. “As sentenças não podem depender do capricho do juiz ou do estado da opinião pública. Há regras claras sobre a relação proporcional que deve haver entre delito e sentença”, disse à BBC, o Conselheiro Legal da Coroa, John Cooper.

No seu regresso antecipado de férias, em pleno apogeu dos saques, o primeiro ministro David Cameron assinalou que não deixaria que uma “falsa concepção” dos direitos humanos obstaculizasse a segurança. Cameron se referia à publicação nos meios de comunicação das fotos de menores de idade acusados de saque. “Espero que caia sobre eles todo o peso da lei”, enfatizou. A mensagem não passou despercebida para os tribunais que estão trabalhando a toque de caixa para processar os mais de 2.700 detidos nos distúrbios em Londres e em outras cidades inglesas. Enquanto, normalmente, nega-se a apenas uns 10% de acusados a liberdade sob fiança por delitos desta monta, agora 64% tiveram o pedido negado, permanecendo presos. O temor de uma justiça sumária e dependente do poder político fez soar o alarma.
Uma magistrada em Camberwell, bairro do sul de Londres, Novello Noades, colocou o dedo na ferida ao dizer que o governo havia passado uma orientação recomendando aos juízes que ditassem penas de prisão para os responsáveis por delitos. A magistrada se retratou mais tarde, mas a reputação da justiça já tinha ficado comprometida. O juiz da Corte de Manchester, Andrew Gilbart, marcou o passo com a primeira sentença ditada na Inglaterra pelos distúrbios, uma sentença muito acima dos seis meses máximos que estabelece a lei para delitos desta natureza. Os três homens, que tinham sido presos 24 horas antes e reconheceram sua responsabilidade pelos fatos, fator normalmente atenuante, foram condenados a um total de dois anos de prisão. “Não tenho dúvida que o propósito da corte deve ser demonstrar que estes atos delitivos coletivos têm que receber uma sentença exemplar, muito superior a se tivessem sido cometidos individualmente”, assinalou o juiz.
Esta interpretação da lei foi duramente questionada por distintas organizações legais e vários deputados. “A justiça deve ser restauradora e não retributiva. Deveria se combinar ou alternar a sentença com serviço comunitário e um cara-a-cara com as vítimas que permitisse aos responsáveis entender a consequência de seus atos”, disse um deputado da coalizão do governo, o liberal democrata Tom Brake. O advogado de uma organização especializada em temas de justiça, a Howard League for Penal Reform, Andrew Neilson, disse ao “The Times” que os distúrbios públicos poderiam ser considerados um agravante, mas jamais poderia apagar o princípio de proporcionalidade das sentenças, pedra fundamental de um sistema judicial. Os advogados antecipam uma catarata de apelações das sentenças, mas o deputado conservador de Croydon, um bairro ao sul de Londres, Gavin Barwell, disse que seus eleitores apoiavam plenamente este endurecimento dos magistrados.


A risada de Kafka
A exigência política e a celeridade a que se veem obrigados a trabalhar os tribunais está produzindo algumas cenas dignas de uma mescla de Kafka e Buster Keaton.

Em uma corte, num domingo, a promotora – que havia se apresentado voluntariamente para trabalhar no fim de semana – não conseguia encontrar os papeis do caso que o juiz devia julgar. Cenas similares se repetiram em outros tribunais que tentavam acelerar o procedimento, mas não encontravam os papeis e documentos relativos aos acusados.

Enquanto isso, os 500 policiais que trabalham no operativo Withern seguem fazendo prisões graças à informação que recebem das 20 mil horas de gravação dos circuitos fechados de televisão. Esta investigação ainda em curso, somada ao endurecimento da justiça e às mais de 1.000 pessoas que ainda não receberam sentença, colocam um problema adicional. Segundo dados oficiais, 80 das 132 prisões de Inglaterra e Gales estão superlotadas: onde serão alojados os novos detentos?

Criminalizando o protesto
O endurecimento do aparato judicial não é tão repentino como poderia parecer. Os juízes ditaram sentenças similares aos acusados de violência durante as manifestações contra a triplicação das matrículas universitárias em 2010 e durante o protesto realizado em março contra os cortes no orçamento do governo.

O filho do guitarrista do Pink Floyd, Charlie Wilmour, recebeu uma pena de 16 meses por lançar um cubo contra o Rolls Royce no qual viajavam o príncipe Charles e sua esposa Camila Parker-Bowles e por desferir chutes em uma vitrine. Francis Fernie recebeu um ano por lançar dois pedaços de pau contra a polícia durante um protesto sindical. O caso de Alfie Meadows, um estudante de 20 anos, é mais absurdo ainda. Medows foi ferido nos protestos, sofreu uma hemorragia cerebral e espera julgamento por “sua conduta violenta”.

Segundo o famoso advogado inglês, Michael Mansfield, que defendeu os quatro acusados de Guilford (caso retratado no filme “Em nome do pai”), está se atentando contra o direito ao protesto. “Celebramos o protesto no mundo árabe e condenamos seus governos pelo uso da força. Enquanto isso criminalizamos o protesto aqui. Isso é uma tentativa de intimidação para que as pessoas deixem de se manifestar”, assinalou Mansfield. Com o novo aumento do desemprego anunciado nesta quarta-feira e quase dois milhões e meio de pessoas desempregadas é previsível que se volte a exercer este direito ao protesto.

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