Mar de Leite

Uma crônica escrita por mim em 2008 sobre o filme Ensaio sobre a cegueira:


Moscovici falaria em representações sociais na sua psicologia social. Althusser talvez falasse em ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. O que é indubitável é que, de uma maneira ou de outra, em geral vão todos concordar que a realidade é socialmente construída. Os mecanismos que operam essa construção e o seu entendimento mudam de acordo com as perspectivas teóricas nas quais se fundamentam os autores.

O que importa dizer é que os laços constitutivos da sociedade não são dados, não estavam lá antes, como supunha Durkheim. Os laços da sociedade são construídos pelos seus sujeitos atores, com maior ou menor acordo. São mantidos pelo discurso/ideologia, que legitima a relação entre dominadores e dominados, se essa for assima relação.

Quando leio Saramago geralmente deixo a leitura com a mesma angústia que deixei o cinema hoje, após duas horas de “Ensaio sobre a cegueira”. Difícil comentar obrar de arte, seja literatura, seja cinema. Ainda mais quando a gente sabe que literatura se fundamenta nas representações dos leitores e cinema em uma representação do diretor. Quando o filme se baseia em livro, então, é a representação de um leitor que dirige a estória.

Pensei em um texto bíblico sobre o qual refleti esta semana. O profeta Jeremias discorre sobre os pecados do povo e de seus líderes. Afirma que os profetas mentem e que, por isso, os sacerdotes oprimem o povo. E ainda assim, o povo é feliz, gosta daquilo. Na boca de Jeremias, Deus fala: Porém, o que é que eles vão fazer quando essa situação chegar ao fim?

O que estrutura uma sociedade? Jeremias já sabia: é um discurso ideológico que legitima no poder uma elite dominante e que faz o povo feliz por entender que as coisas são o que deveriam ser. A sociedade é estruturada pela linguagem e na linguagem é que acontecem as mais sangrentas batalhas ideológicas.

Nós vivemos em um contexto em que é difícil compreender que a sociedade é uma realidade objetivada, naturalizada em nosso redor. Ela é uma que os homens escolheram para ter. Em algum momento. Ela não é dada, natural. As nossas relações familiares, nossas relações com o poder estabelecido, com o Estado, uns com os outros, não são pautadas por qualquer ética sobrehumana, mas foram construídas ao longo de nossa caminhada humana.

Nós nascemos num mundo em que o sentido já estava posto, um sentido que pouco a pouco foi sendo internalizado em cada um de nós. Isso é a humanização. O homem não nasce humano, mas ele se faz humano quando entra em relação com os outros homens, com a sociedade. É a sociedade que humaniza um ser que não nasce pronto, completo, mas que se faz homem em relação com a sociedade. Se em algum momento as escolhas de nossos antepassados tivessem sido outras, a nossa sociedade seria outra e outros seriam os seres humanos que andam por aí.

Saramago sempre consegue tocar o dedo na ferida nesse aspecto. Ele sempre consegue expor para seus leitores a fragilidade dos laços constitutivos de nossa sociedade. Ele sempre os suspende para nos mostrar o que somos nós fora de nosso mundo de sentido.

Em "As intermitências da morte" é a greve que a senhora Morte promove que provoca a suspensão dos sentidos do mundo. Por isso, deus tem letra minúscula, porque no entendimento do português ateu, ele está no bolo dos discursos constitutivos do mundo social, que podem ser dispensados para que o homem saia de sua cegueira.

"O Ensaio sobre a cegueira" nos conduz à viagem semelhante. O que seria o mundo sem os sentidos que nossa sociedade construiu? Sem as linhas de orientação? O que acontece com o homem sem mundo social, sem laços de família, sem Estado, sem polícia? O que acontece ao homem que não se vê cobrado pela ética de se olhar no espelho?

O distúrbio é passageiro, na verdade. A gente não se aceitaria ficar maluco. Desse modo, a gente consegue busca construir novos sentidos e busca novas formas de sociabilidade. Nós precisamos de sentido para a vida. Sem querer falar de livro ou do filme, preciso citar uma cena. A personagem de Alice Braga, andando, cega, pela cidade destruída, diz à mulher do médico que encontrou um grupo liderado por um homem, grupo esse que dorme a cada noite em um lugar diferente, já que não conseguem chegar às suas casas – não se lembram o caminho. Alice comenta que o homem está enlouquecido. Sutil ironia. Todos estão cegos, inclusive a personagem de Alice, e o homem é louco porque não consegue chegar em casa. Mesmo sem enxergar, ele deveria saber o caminho de casa.

Na boca de Jeremias, Deus fala: Porém, o que é que eles vão fazer quando essa situação chegar ao fim? É nessa suspensão de sentidos que Saramago joga no nosso rosto o que podemos ser. E é nessa suspensão de sentidos que a gente é desafiado a questionar o mundo construído à nossa volta e a perceber quão frágeis são os seus laços. E o desafio é perceber o que vamos fazer e o que vai sobrar quando tudo isso passar.

Não entendi porque tantas críticas ruins à obra de Fernando Meireles. Há um problema logo no início do filme, mas que não fica sem solução. Talvez o problema foi ele ter sido louco de fazer um filme de um livro assim. Mas as coisas estão bem resolvidas. Bem resolvidas demais. Para quem souber do que estou falando, o momento em que eu senti que Meireles tinha sucesso na sua empreitada foi quando eu tive vontade de matar o Rei.

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