Eugênio Bucci
Do Estadão, via Substantivo Plural
O título deste artigo não é uma provocação. A pergunta que ele encerra está na ordem do dia. Afinal, o que o Palácio dos Bandeirantes quer da TV Cultura? Pretende asfixiá-la?
Embora essa resposta se esconda nas ambiguidades melífluas do governo, os fatos parecem indicar que sim, a intenção é abandonar a nossa emissora pública à carência total de recursos. Entre as evidências mais recentes, destaquemos uma, apenas uma. Na segunda-feira, reportagem da Folha de S.Paulo, assinada pela repórter Lúcia Valentim Rodrigues, mostra que, ano após ano, vai escasseando o investimento público na Fundação Padre Anchieta (à qual pertencem a Rádio e a TV Cultura). Em 2003, ele representava 81,53% da receita da fundação. Agora, está na casa dos 50%. Em valores absolutos, o declínio é dramático. A previsão de R$ 84 milhões de verba estatal para este ano fica 35% abaixo da verba de 2010.
Ainda que não sejam exatos, esses números não são acidentais. Há neles a consistência de uma política deliberada, embora não declarada. Prestemos atenção, porque, se levada ao limite, essa política vai matar a TV Cultura. Das duas, uma: ou ela não terá recursos para mais nada e se perderá na irrelevância, até desaparecer na garoa cinzenta, às margens do Tietê, ou terá de buscar o faturamento no mercado publicitário – o que já vem fazendo, há uns bons anos – e, nesse caso, ficará cada vez mais parecida com as televisões comerciais. Será a morte, do mesmo jeito.
Uma televisão pública parecida com as emissoras comerciais é uma instituição dispensável. Não tem razão de ser. A TV pública só é necessária às sociedades democráticas porque consegue pôr no ar uma programação alternativa, substancialmente distinta, capaz de dar destaque a atrações que não trariam resultados econômicos a uma empresa que depende de lucro para sobreviver. Exatamente por isso, ela não deve exibir publicidade de lojas e de automóveis em seus intervalos. Quando cai nessa tola armadilha, fica esteticamente similar às outras; a sua cadência, o seu ritmo, vai se tornando igual – e, mais ainda, a sua lógica ordenadora interna é absorvida pelas leis do mercado, como se ela fosse comercial. Aí, ela passa a prestar contas aos anunciantes, em vez de prestar contas à cidadania.
Isso mesmo: a televisão pública presta contas à cidadania. É bem verdade que essa formulação, com essas palavras, eriça as sobrancelhas e franze a calva dos gestores mais, digamos, tecnocráticos. “Mas o que significa essa tal cidadania?”, eles contestam, do alto de sua razoabilidade aritmética. Para que eles entendam – ainda que o esforço seja inútil – seria bom lembrar aqui o exemplo das escolas públicas. Pedir que as escolas públicas deem margem operacional positiva no final do ano seria um contrassenso, e disso eles bem sabem. As escolas públicas existem não para dar dinheiro no balanço contábil, mas para produzir conhecimento e qualificar gente numa escala que não aparece em business plan, mas faz toda a diferença no progresso e na vida nacional. A televisão pública é mais ou menos a mesma coisa: sem ela a vida cultural se amofina, a diversidade das ideias se apequena, o horizonte existencial da Nação se estreita. Assim como a boa escola pública, a emissora pública presta o seu serviço à democracia, ao desenvolvimento, à educação. Assim como a escola pública, ela presta contas ao cidadão (não ao consumidor) e à sociedade (não ao mercado).
“Você está exagerando, meu caro”, vai debochar o tecnocrata. E, no entanto, não há exagero algum aqui. Em todas as democracias maduras existem instituições de comunicação pública. E todas elas vivem de dinheiro público. Mesmo num modelo de financiamento como o da BBC, baseado na cobrança de uma taxa anual (compulsória) nos lares com televisão, a garantia de financiamento vem do Estado, pois a taxa é cobrada por força de lei, assegurada pelo Estado. Assim, o dinheiro que sustenta a BBC é dinheiro público. Nos Estados Unidos, as emissoras da National Public Radio (NPR) e do Public Broadcasting Service (PBS) recebem verba estatal. Não adianta procurar, não existe outra saída. Se o Estado não assegurar o financiamento das emissoras públicas, elas fenecem: ou morrem no acostamento, sucateadas, ou se convertem nesses monstrengos de segunda linha, exibindo comerciais de segunda linha e programas de quinta (existem algumas dessas pelo mundo).
Em resumo, cabe ao Estado assegurar os meios de financiamento público – e, de outro lado, cabe à direção da emissora pública promover uma gestão transparente, eficiente, baseada nos princípios da legalidade, da moralidade e da economicidade. É evidente que este artigo não defende o cabide de empregos nem a instrumentalização das antenas pelos interesses partidários de governantes – essa é a pior doença nas emissoras públicas brasileiras. A fórmula saudável reside na combinação do financiamento público com gestão fiscalizada, auditada e competente, mas independente tanto do governo quanto do mercado.
Quanto a isso, a atual direção da Fundação Padre Anchieta vem dando mostras de que tem compromisso real com o imperativo inadiável de sanear a administração. Ela chegou a demitiu funcionários para ganhar produtividade e combater inchaços que eram inaceitáveis. Há coragem e disposição genuinamente pública na direção da fundação. O que falta é apoio claro do governo do Estado.
Falta, enfim, um projeto claro. A TV Cultura ainda é a única emissora brasileira a merecer o adjetivo pública. Ela não tem funções governamentais e opera com boa margem de independência. Cabe ao governo decidir e declarar se quer mantê-la ou se quer destruí-la.
Do Estadão, via Substantivo Plural
O título deste artigo não é uma provocação. A pergunta que ele encerra está na ordem do dia. Afinal, o que o Palácio dos Bandeirantes quer da TV Cultura? Pretende asfixiá-la?
Embora essa resposta se esconda nas ambiguidades melífluas do governo, os fatos parecem indicar que sim, a intenção é abandonar a nossa emissora pública à carência total de recursos. Entre as evidências mais recentes, destaquemos uma, apenas uma. Na segunda-feira, reportagem da Folha de S.Paulo, assinada pela repórter Lúcia Valentim Rodrigues, mostra que, ano após ano, vai escasseando o investimento público na Fundação Padre Anchieta (à qual pertencem a Rádio e a TV Cultura). Em 2003, ele representava 81,53% da receita da fundação. Agora, está na casa dos 50%. Em valores absolutos, o declínio é dramático. A previsão de R$ 84 milhões de verba estatal para este ano fica 35% abaixo da verba de 2010.
Ainda que não sejam exatos, esses números não são acidentais. Há neles a consistência de uma política deliberada, embora não declarada. Prestemos atenção, porque, se levada ao limite, essa política vai matar a TV Cultura. Das duas, uma: ou ela não terá recursos para mais nada e se perderá na irrelevância, até desaparecer na garoa cinzenta, às margens do Tietê, ou terá de buscar o faturamento no mercado publicitário – o que já vem fazendo, há uns bons anos – e, nesse caso, ficará cada vez mais parecida com as televisões comerciais. Será a morte, do mesmo jeito.
Uma televisão pública parecida com as emissoras comerciais é uma instituição dispensável. Não tem razão de ser. A TV pública só é necessária às sociedades democráticas porque consegue pôr no ar uma programação alternativa, substancialmente distinta, capaz de dar destaque a atrações que não trariam resultados econômicos a uma empresa que depende de lucro para sobreviver. Exatamente por isso, ela não deve exibir publicidade de lojas e de automóveis em seus intervalos. Quando cai nessa tola armadilha, fica esteticamente similar às outras; a sua cadência, o seu ritmo, vai se tornando igual – e, mais ainda, a sua lógica ordenadora interna é absorvida pelas leis do mercado, como se ela fosse comercial. Aí, ela passa a prestar contas aos anunciantes, em vez de prestar contas à cidadania.
Isso mesmo: a televisão pública presta contas à cidadania. É bem verdade que essa formulação, com essas palavras, eriça as sobrancelhas e franze a calva dos gestores mais, digamos, tecnocráticos. “Mas o que significa essa tal cidadania?”, eles contestam, do alto de sua razoabilidade aritmética. Para que eles entendam – ainda que o esforço seja inútil – seria bom lembrar aqui o exemplo das escolas públicas. Pedir que as escolas públicas deem margem operacional positiva no final do ano seria um contrassenso, e disso eles bem sabem. As escolas públicas existem não para dar dinheiro no balanço contábil, mas para produzir conhecimento e qualificar gente numa escala que não aparece em business plan, mas faz toda a diferença no progresso e na vida nacional. A televisão pública é mais ou menos a mesma coisa: sem ela a vida cultural se amofina, a diversidade das ideias se apequena, o horizonte existencial da Nação se estreita. Assim como a boa escola pública, a emissora pública presta o seu serviço à democracia, ao desenvolvimento, à educação. Assim como a escola pública, ela presta contas ao cidadão (não ao consumidor) e à sociedade (não ao mercado).
“Você está exagerando, meu caro”, vai debochar o tecnocrata. E, no entanto, não há exagero algum aqui. Em todas as democracias maduras existem instituições de comunicação pública. E todas elas vivem de dinheiro público. Mesmo num modelo de financiamento como o da BBC, baseado na cobrança de uma taxa anual (compulsória) nos lares com televisão, a garantia de financiamento vem do Estado, pois a taxa é cobrada por força de lei, assegurada pelo Estado. Assim, o dinheiro que sustenta a BBC é dinheiro público. Nos Estados Unidos, as emissoras da National Public Radio (NPR) e do Public Broadcasting Service (PBS) recebem verba estatal. Não adianta procurar, não existe outra saída. Se o Estado não assegurar o financiamento das emissoras públicas, elas fenecem: ou morrem no acostamento, sucateadas, ou se convertem nesses monstrengos de segunda linha, exibindo comerciais de segunda linha e programas de quinta (existem algumas dessas pelo mundo).
Em resumo, cabe ao Estado assegurar os meios de financiamento público – e, de outro lado, cabe à direção da emissora pública promover uma gestão transparente, eficiente, baseada nos princípios da legalidade, da moralidade e da economicidade. É evidente que este artigo não defende o cabide de empregos nem a instrumentalização das antenas pelos interesses partidários de governantes – essa é a pior doença nas emissoras públicas brasileiras. A fórmula saudável reside na combinação do financiamento público com gestão fiscalizada, auditada e competente, mas independente tanto do governo quanto do mercado.
Quanto a isso, a atual direção da Fundação Padre Anchieta vem dando mostras de que tem compromisso real com o imperativo inadiável de sanear a administração. Ela chegou a demitiu funcionários para ganhar produtividade e combater inchaços que eram inaceitáveis. Há coragem e disposição genuinamente pública na direção da fundação. O que falta é apoio claro do governo do Estado.
Falta, enfim, um projeto claro. A TV Cultura ainda é a única emissora brasileira a merecer o adjetivo pública. Ela não tem funções governamentais e opera com boa margem de independência. Cabe ao governo decidir e declarar se quer mantê-la ou se quer destruí-la.
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