Reedição de "Memórias" de Gregório Bezerra relembra as histórias de um homem extraordinário

Do UOL e do site do PCB:

Gregório Bezerra (1900-1983) nasceu miserável em Panelas, no agreste pernambucano. Órfão logo cedo, começou a trabalhar no campo aos cinco anos de idade.

Foi empregado doméstico, jornaleiro, peão de obra, sargento do Exército. Alfabetizou-se aos 25 anos.

Tornou-se militante comunista. Passou ao todo 22 anos preso, em quatro ocasiões de quatro diferentes décadas.

Na cadeia, fez amizade com o cangaceiro Antonio Silvino. Elegeu-se deputado federal constituinte pelo PCB em 1946. Organizou sindicatos de trabalhadores rurais. Morou com Luís Carlos Prestes. Foi torturado em 35 e em 64, desta feita em praça pública, aos 64 anos. Consta que nunca delatou um colega.

Um dos presos trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick em 1969, viveu dez anos exilado na União Soviética, voltando ao país com a Anistia de 1979.





Ferreira Gullar fez para ele um poema, Oscar Niemeyer projetou um memorial em sua homenagem (que ainda não saiu do papel) e por estes dias até inspirou um personagem da novela "Amor e Revolução", no ar no SBT.

Antes de virar lenda, Gregório Bezerra registrou essa vida assombrosa em suas "Memórias", editadas originalmente em 1979 em dois volumes e que agora ganham reedição pela Boitempo.

O lançamento, que agrega os dois volumes num único, reúne fotografias, cronologia, índice onomástico, artigos, depoimentos e poema em cordel de Gullar, "História de um Valente" (leia a história e um trecho ao lado).

O prefácio é de Anita Leocadia Prestes, filha de Prestes com Olga Benario, que conheceu Gregório ainda menina, quando ele morou na casa da família no Rio, e mais tarde no exílio soviético.


Sem jipe

Escrito em tom confessional, quase como um diário, o livro mais vale como documento histórico que como literatura. Vai da infância pobre até 69, quando é exilado. Começou a ser escrito na cadeia e foi concluído em Moscou, onde viveu por dez anos. Revela uma admiração pelo regime soviético.

A obra ajuda a esclarecer o episódio da tortura em 2 de abril de 64, na alvorada da ditadura, quando Gregório foi espancado e humilhado por militares pelas ruas do bairro de Casa Forte, no Recife. As imagens da tortura foram veiculadas pela TV no então Repórter Esso. A selvageria causou tamanha comoção que os registros da tortura jamais foram encontrados nos arquivos do exército.

Livros e textos sobre o período dizem que o comunista foi arrastado por um jipe. Gregório não cita o veículo.

Conta que, após ter os pés mergulhados em solução de bateria e ser obrigado a caminhar sobre britas, teve três cordas amarradas ao pescoço e foi puxado como bicho enquanto um coronel incitava a população a linchá-lo.

"É exagero popular", diz sobre o jipe o cineasta Cláudio Barroso, que prepara um longa sobre Gregório. A versão também é contestada por Roberto Arrais, que foi seu secretário e escreve a orelha da nova edição.


Trechos do livro

“Foi o Natal mais farto e rico de alegria a que assisti durante os nove anos e dez meses de minha vida. Além disso, ganhei dois metros de algodãozinho para fazer duas camisas, porque só tinha uma e velha, que já estava virando farrapo. Aproveitei a cumplicidade de vovó e pedi-lhe que me fizesse uma camisa e uma calça, em vez de duas camisas. A velha topou as minhas antigas pretensões. Entretanto a costureira, que foi a minha tia Guilhermina, em vez de me fazer uma calça, fez uma ceroula grande, de amarrar acima do tornozelo. Deram-me para vestir. Achei bonita e até mais bonita do que uma calça, porque me fez lembrar do meu falecido avô, que, quando vivo, somente vestia ceroulas compridas amarradas no tornozelo. Calça só vestia quando ia à feira ou em visita aos domingos. Afinal, todos aprovaram a ceroula, menos minha irmã Isabel. Ganhei a “batalha” de anos atrás, quando pleiteei uma calça no sítio Goiabeira. Era feliz, agora, e me sentia homem. O Natal e Ano-Novo serviram para minhas exibições de ceroulas compridas e camisa fora da calça.”

“Voltei à rua, tentando ver se alguns operários haviam chegado. Não havia ninguém. Fiz um ligeiro comício para os pequenos grupos que se aglomeravam nas sacadas dos prédios vizinhos, concitando-os a pegar em armas, sob o comando do camarada Luiz Carlos Prestes. Fui aplaudido das varandas por alguns estudantes que ali moravam. Mas o apoio, infelizmente, não passou dos aplausos. Um oficial tentou prender-me, pedindo-me que, pelo amor de Deus, eu me rendesse. Ao chegar a dez metros de mim, apontei-lhe o fuzil e o fiz recuar. Vinha chegando um sargento radiotelegrafista que, de longe, perguntou-me o que havia. Respondi-lhe que, se quisesse lutar pela Aliança Nacional Libertadora, tinha um lugar a sua disposição; se não, caísse fora enquanto era tempo.”

Comentários