As coisas que aprendi nos discos - Homem Primata

Tornei-me evangélico em uma comunidade muito conservadora - já falei isso aqui.
Uma das características desse conservadorismo era sua incapacidade de autocrítica.  Aliás, essa questão era profundamente polêmica porque a liderança da igreja não se permitia ser criticada, especialmente por quem "fosse do mundo".   A crítica dos ateus, dos que viam a religião sob sua perspectiva discursiva e a posicionavam em seu lugar ideológico.  A religião um ópio, um aparelho ideológico do Estado.
Quando voltei do seminário me utilizando de músicas "do mundo" para substanciar minhas reflexões, especialmente aquelas que criticavam a nossa fé "verdadeira"- que seria o mesmo que inquestionável - fui muito contestado e instado a ouvir músicas espirituais. Afinal eu não teria nada de útil a aprender com os Titãs, por exemplo.
No seminário me utilizei de uma crítica dos Titãs para realizar uma reflexão teológica - do papel dos crentes e da religião no mundo, um papel muito bem definido ideologicamente.



Desde os primórdios
Até hoje em dia
O homem ainda faz
O que o macaco fazia
Eu não trabalhava
Eu não sabia
Que o homem criava
E também destruía...

Homem Primata
Capitalismo Selvagem

Eu aprendi
A vida é um jogo
Cada um por si
E Deus contra todos
Você vai morrer
E não vai pro céu
É bom aprender
A vida é cruel...

Homem Primata
Capitalismo Selvagem

Eu me perdi
Na selva de pedra
Eu me perdi


"I'm a cave man
A young man
I fight with my hands
(With my hands)
I am a jungle man
A monkey man
Concrete jungle!
Concrete jungle!"


Provoquei polêmica porque queria refletir sobre nosso papel na sociedade a partir da crítica exposta na canção - que funde capitalismo e cristianismo como já diria Weber: Cada um por si/E Deus contra todos/Você vai morrer/E não vai pro céu/É bom aprender/A vida é cruel...

Numa comunidade conservadora citar um verso ateu para refletir sobre o papel da religião evangélica era muita ousadia.  O verso me ensinou tanto sobre a importância e a ousadia de refletir a partir da mais radical crítica que me seja dirigida, como me ensinou sobre o conteúdo que expõe.

A reflexão nesses versos serviu para trazer de novo, num ambiente teológico, noções que andavam sublimadas e esquecidas pela nova vivência da fé.  A fé é uma arma de acomodação ideológica e alienação política e social.  E não deixará de ser, mesmo que nossas propostas sejam cada vez mais abrangentes e inclusivas.  Sempre estaremos em um ambiente arbitrário, autoritário, ideológico.  Vivemos uma fé que tem um livro sagrado, uma verdade, que é exposta por alguns autorizados - como eu mesmo frequentemente.  Vou lá na frente e falo em nome de Deus.  Não é em meu nome, mas em nome de um poderoso e soberano Deus.  Falar em Seu nome é alienar aqueles sujeitos que me escutam de poder e autonomia.

Ainda assim, aprendi com Homem primata, além de uma síntese precisa do capitalismo [selvagem], a levar em consideração os riscos de alienação política, social e ideológica que a minha fé é capaz de impor.  Sempre.  A maior delas é prometer o céu, vida melhor em outra esfera, e, ao mesmo tempo e por decorrência, estimular a acomodação e a aceitação de uma dura e desonesta vida cruel.  Esse é o discurso de nossas religiões cristãs, ainda que o digam diferente na formalidade da língua (é só perguntar aos gays sobre a perseguição que sofrem de nossos movimentos cristãos conservadores).  A mensagem é clara: esqueçam a vida aqui, não lutem para melhorar a sociedade (que está condenada), espere o céu, sua vida plena será apenas lá.

Saber desse discurso e dessa mensagem reforçam a importância de lembrar da crítica:

A vida é um jogo
Cada um por si
E Deus contra todos
Você vai morrer
E não vai pro céu
É bom aprender
A vida é cruel...

Comentários