Lúcio de Castro: Fui injusto com @miguelnicolelis

Por Lúcio de Castro
No site da ESPN

Cheguei de Macaíba como um disco quebrado. Samba de uma nota só. Bolero de Ravel, como João Saldanha se referia a tudo o que era repetitivo. Estava assim naqueles dias. Provavelmente insuportável. Só queria falar sobre Miguel Nicolelis. Quem passava na minha frente pagava o pedágio. Acho que todo mundo já passou por isso: um estado de empolgação que torna a pessoa repetitiva ao extremo. Mas tinha motivos de sobra. Passara três dias em Macaíba, no Rio Grande do Norte, tendo Nicolelis como cicerone, acompanhando o dia a dia dele no Instituto que criou, almoçando com aquele monstro sagrado em restaurantes de beira de estrada e acima de tudo vendo o milagre da transformação que se opera por lá.

E repetia para todo mundo desde o instante em que pisei de volta na minha São Sebastião do Rio de Janeiro: “conheci um gênio”. Bastava passar na minha frente que eu, ainda meio atônito, mandava: “conheci um gênio”. E em qualquer mesa, qualquer resenha, forçava o papo para falar de Nicolelis. E mandava: “conheci um gênio”. Essas recordações voltaram no sábado, vendo o “Histórias do Esporte”, onde Nicolelis era um dos personagens. Mas fui profundamente injusto com Miguel Nicolelis.
É óbvio que Miguel Nicolelis é um gênio. Essa é a face mais evidente e óbvia do neurocientista que impressionou a todos na Academia Sueca de Ciência, o homem cotado para o Nobel, o diretor do instituto de neuroengenharia da Universidade de Duke (EUA), o homem considerado como um dos 20 mais influentes do mundo, recebido por todos os presidentes americanos. Portanto, ir a Macaíba e voltar com essa constatação, é um brutal desperdício, ao qual submeti o ouvido de alguns amigos por alguns dias.

Nicolelis é muito mais do que isso. Chamá-lo apenas de “gênio” é reduzir a grandeza de um homem espetacular, um daqueles que ainda nos fazem acreditar na raça humana, a um aspecto apenas. Nicolelis é antes de qualquer coisa um humanista. Um sonhador, um brasileiro maior, um daqueles tipos raros onde teoria e prática se encontram de mangas arregaçadas para mudar o mundo, para quebrar séculos de tabus e preconceitos.

A profissão me deu alguns presentes e possibilidades muito além do que poderia sonhar. Momentos únicos. Mas entre eles, certamente estar naqueles dias com Miguel Nicolelis foi um dos maiores entre esses.

Desse homem que juntou sonho e prática cirurgicamente ouvi algumas coisas que não me esquecerei jamais. Definições de Brasil, esperanças, utopias construídas diariamente. Foi em Macaíba, 34ª colocada no IDH do Rio Grande do Norte (atenção: 34ª colocada no IDH do Rio Grande do Norte!) que Nicolelis resolveu botar de pé seu sonho, provar que se tiverem oportunidades, crianças paupérrimas podem ser cidadãos em plenitude, doutores, o que sonharem. Foi desse gênio da raça que ouvi as tais coisas que não me esquecerei. Que desafiam os pernósticos engravatados, colonizados que falam de seu país e de sua gente sem ter a mínima ideia do que estão falando.

“A filosofia central do projeto, há 6 anos atrás, era demonstrar que poderíamos descentralizar a produção de conhecimento de alto nível no Brasil, sair dos grandes centros, e vir pra um local onde nenhum cientista viria em sã consciência, e mostrar que o talento local e de outros, que voltaram, essa mescla, poderia gerar ciência do mais alto nível, e alem disso, usar essa ciência como agente de transformação social. Nós tínhamos que testar o modelo e é um grande experimento social, e 6 anos depois eu acho que estamos começando a chegar a um diagnostico, e ele comprova a hipótese, de que pode se fazer ciência de alto nível em qualquer lugar do Brasil, que o talento existe em qualquer lugar, é só as oportunidades estarem disponíveis, e haver um desejo político e dedicação ferrenha de oferecer essas oportunidade pra que o talento aflore. O que provamos era o óbvio: de que o talento humano é distribuído homogeneamente por todo o território nacional.”


“A primeira coisa que decidimos é que iríamos ter escola em que o primeiro mandamento é que teríamos escola onde elas seriam felizes, e o segundo mandamento é que se sentissem em ambiente onde fossem amadas. Esses dois mandamentos transformam a relação do aluno com a escola. No momento que ela entra e sabe que pode expressar seus receios, medos, e que alguém vai ampará-la, que não existe pergunta idiota, que alguém vai confortá-la, nesse momento, criança taxada de rebelde, problemática, ela se desveste dessa pecha, e vira o que ela é: criança! Na verdade, a criança problemática, rebelde, elas são crianças. Nós temos que achar soluções. O dilema é nosso, ela jamais deveria ser abandonada, expulsa. Provavelmente, o ato de rebeldia dela é um pedido de socorro, de apoio. O que descobrimos é que essa receita de felicidade, apoio, de amor incondicional, resolve qualquer problema de indisciplina, sem perder o rigor educacional. Não temos nesses dois anos caso de criança que deixou de vir por ser problemática. Nenhuma criança pra nós é problema, elas são soluções.”

“A maior constatação empírica como cientista, que observa e quer tirar alguma conclusão, é de quanto talento o Brasil tem, e quanto talento ta aí, a disposição a ser coletado, e de quanta maneira quanto talento o Brasil desperdiça porque essas crianças, tanto essas que fazem ciência desse prédio quanto da escola, tem muito a oferecer ao mundo. Eles chegam aqui olhando pro chão, chegam tímidas, não se expressam, não tem coragem, e em alguns meses começam a acreditar no seu talento, que permitem que elas hoje não olhem pro chão mais. Saber que quando se expressam, tão exercendo um direito, e tão contribuindo pra algo muito maior. Essa seria a maior contribuição do projeto: devolver a essas crianças o que jamais deveria ter sido tirado delas. Esse direito de participar”

Miguel Nicolelis é um desses brasileiros que nos fazem seguir com algum otimismo, mesmo diante de tantos obstáculos, Sarneys, Teixeiras, Cabrais...

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