Pepe Escobar, Asia Times Online, Tradução: Vila
Vudu
14/9/2011
14/9/2011
Finalmente. Cristalinamente claro. Alguém,
afinal, disse o que todo mundo – exceto Washington e Telavive – sabe no fundo do
coração coletivo mundial: o reconhecimento de um estado palestino “não é
escolha, é obrigação”.
E foi prodigioso que o homem que o disse tenha
sido o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no Cairo, para a Liga
Árabe, à frente de todos os ministros árabes de Relações Exteriores, com
virtualmente todo o mundo árabe de olhos colados às telas de televisão
conectadas por satélite, e cada palavra de Erdogan sob cerrado escrutínio.
O atual tour de Erdogan pela Primavera Árabe –
como noticiou a imprensa turca – passando por Egito, Tunísia e Líbia, já o havia
catapultado ao status de equivalente geopolítico de cruza de Bono, do U2, com o
argentino Lionel Messi, superstar da equipe de futebol do Barcelona.
Erdogan teve recepção de estrela do futebol/rock
no aeroporto do Cairo – completada com faixas e “Erdogan Herói” brandidas pela
Fraternidade Muçulmana. Até falou em árabe à multidão (de “Saúdo a juventude e o
povo do Egito. Como vão vocês?” até “Que a paz esteja com vocês”).
Erdogan repetiu várias vezes que “Egito e Turquia
andam de mãos dadas”. Mas o subtexto foi ainda mais incendiário. No momento em
que dois bons ex-amigos de Israel, Egito e Turquia andam de mãos dadas, Israel
foi deixada isolada, de cara para um muro. Não poderia haver desenvolvimento
mais radicalmente redemarcador em todo o Levante – coisa que jamais se viu desde
os acordos de paz de Camp David, entre Israel e o Egito, em 1978.
Divulgador militante modelo
O tour de Erdogan é lição magistral de
realpolitik. Está posicionando a Turquia como vanguarda do apoio à causa dos
palestinos. Também está posicionando a Turquia no núcleo duro da Primavera Árabe
– como apoiador e modelo inspiracional, apesar de, até agora, ainda não ter
havido revolução às veras. Está enfatizando uma sólida unidade turco-árabe –
planejando, por exemplo, um conselho de cooperação estratégica entre Egito e
Turquia.
Além do mais, a coisa toda faz bom sentido em
termos de business. A caravana de Erdogan inclui seis ministros e quase 200
empresários turcos – interessados em investir pesadamente em todo o norte da
África. No Egito, talvez não igualem os bilhões de dólares já prometidos pela
Casa de Saud à junta militar liderada pelo marechal-do-ar Mohammed Tantawi. Mas
em 2010, o comércio turco com o Oriente Médio e Norte da África já era de quase
$30 bilhões, 27% das exportações da Turquia. Mais de 250 empresas turcas já
investiram $1,5 bilhão no Egito.
Crucialmente importante, Erdogan disse ao canal
Dream da televisão egípcia: “Não desconfiem do secularismo. Espero que haja
estado secular no Egito.” Erdogan referia-se sutilmente à constituição secular
da Turquia; ao mesmo tempo, cuidadosamente, lembrava aos egípcios que o
secularismo é compatível com o Islã.
O atual modelo turco é enormemente popular na rua
egípcia, com partido islâmico moderado no poder (o partido Justiça e
Desenvolvimento, AKP); constituição secular; militares – embora fortes – na
caserna; e florescente boom econômico (a Turquia foi a economia que mais
cresceu, em todo o mundo, no primeiro semestre de 2001).[1]
Esse modelo não é exatamente o que deseja a
reacionária Casa de Saud. Prefeririam governo pesadamente islâmico controlado
pelas facções mais conservadoras da Fraternidade Muçulmana. Pior: no que tenha a
ver com a Líbia, a Casa de Saud adoraria ter lá um emirado amigo, ou, pelo
menos, governo salpicado com islâmicos fundamentalistas.
Erdogan também destacou que a “agressividade” de
Israel “é ameaça ao futuro do povo israelense”. É música aos ouvidos da rua
árabe. O presidente palestino Mahmoud Abbas encontrou-se com Erdogan no Cairo –
e confirmou que levará adiante o pedido para que a Palestina seja reconhecida
como estado pelo Conselho de Segurança da ONU ainda nesse mês de setembro.
A Palestina será definitivamente aceita como
estado membro sem direito a voto pelo plenário da Assembleia Geral da ONU. O
problema é o Conselho de Segurança extremamente não representativo – ao qual
compete sancionar o direito dos membros plenos, que votam. Claro que Washington
vetará. A União Europeia fraturada, fiel ao próprio caráter, ainda não decidiu
se votará como bloco. Há forte possibilidade de que Grã-Bretanha e França também
vetem o pedido dos palestinos ao Conselho de Segurança.
Mas mesmo que só alcancem o prêmio de consolação
de tornar-se estado membro sem voto, ainda assim os palestinos alcançarão uma
vitória moral – alinhada com o que deseja a opinião pública mundial. Como estado
membro, e mesmo sem o direito a voto, a Palestina poderá tornar-se estado membro
da Corte Criminal Internacional, indispensável para processar Israel até o Juízo
Final, por violação serial da legislação internacional.
Seguir o chefe
O jogo da Turquia vai muito além de algum
‘neo-otomanismo’ – ou nostalgia de reviver dias de superpotência dos séculos 16
e 17. É desenvolvimento natural da política de “zero problemas com nossos
vizinhos” do ministro Ahmet Davutoglu das Relações Exteriores – que se move para
criar vínculos mais profundos com a maioria desses vizinhos e consolidar o que o
próprio Davutoglu define como destino estratégico da Turquia[2].
A Turquia, há alguns anos, abandonou
decididamente uma deriva isolacionista do nacionalismo turco. O país parece ter
afinal superado o trauma associado ao sonho de unir-se à União Europeia; para
todas as finalidades práticas, o sonho foi destruído por França e Alemanha.
Quanto à aliança Israel-Turquia, de fato afastou
o mundo árabe e confinou a Turquia a um papel passivo, de marginal sem qualquer
ação efetiva no Oriente Médio. Já não é assim. Erdogan pode agora enviar várias
mensagens simultâneas a Israel, EUA, União Europeia, a um sortido de líderes
árabes e, sobretudo, diretamente à rua árabe.
Davutoglu tem sido relativamente magnânimo em
relação a Israel, dizendo que “está sem contato com a região e incapaz de ver as
mudanças que estão acontecendo, o que impossibilita que [Israel] mantenha
relações saudáveis com os vizinhos”.
Poderia ter acrescentado que com ‘amigos’ como
aqueles – Benjamin Netanyahu, como primeiro-ministro; o ex-leão-de-chácara na
Moldávia Avigdor Lieberman como ministro de Relações Exteriores; colonos judeus
fanáticos ditando políticas – Israel não precisa de inimigos ou, então, que
produz inimigos em massa. Foi o próprio governo de Israel que acelerou a
aproximação entre Turquia e Egito – o que está deixando Israel totalmente
isolada.
O toque de gênio de todo o processo é que Erdogan
representa uma democracia em país de maioria muçulmana, fortemente apoiado tanto
pelos palestinos quando pelos verdadeiramente pró-democracia na Primavera Árabe.
Assim se gera uma conexão direta entre a tragédia dos palestinos e o espírito da
Primavera Árabe (que nada tem a ver, vale destacar, com a Organização do Tratado
do Atlântico Norte, OTAN, bombardear a Líbia, ou com uma junta militar governar
o Egito).
Será crucialmente decisivo observar o que
acontecerá com o partido AKP, de raízes islâmicas, de Erdogan. É praticamente
certo que, nas próximas eleições no Egito, a Fraternidade Muçulmana aparecerá
jabeando. É também praticamente certo que a Fraternidade pressionará na direção
de relacionamento minimalista com Israel, inclusive com revisão completa dos
acordos de Camp David. Teoricamente, a Turquia apoiará tudo isso.
E há ainda o front líbio. No primeiro discurso em
Trípoli, o presidente do sinistro Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdel
Jailil, destacou que a lei islâmica, Xaria, seria a principal fonte da
legislação. Mas acrescentou, rápido: “Não aceitaremos nenhuma ideologia
extremista, à esquerda ou à direita. Somos povo muçulmano, por um Islã
moderado.”
Não há qualquer sinal ainda, sequer, de que o
Conselho de Transição consiga manter a integridade do país, para nem falar de
ter condições para promover “Islã moderado”. Os abutres (estrangeiros) continuam
rondando. O secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, andou avisando que
a Líbia corre o risco de cair em mãos de extremistas islâmicos, que podem
“tentar explorar” o atual vácuo de poder. Não se sabe com clareza que papel terá
a Turquia – membro chave da OTAN – numa OTAN plenamente implantada na Líbia.
Dores heavy metal do parto
E tudo isso, enquanto as petromonarquias do Golfo
Persa – horrorizada com a Primavera Árabe – propuseram ajuda direta anual de $2
bilhões à Jordânia, que assim se integraria ao Conselho de Cooperação do Golfo,
também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo. Como clube
monarquista, o CCG quer a Jordânia e o Marrocos como novos membros. Mas a cereja
do bolo seria, isso sim, uma Líbia monárquica.
Em trilha paralela, os contrarrevolucionários
foram forçados pela Turquia a garantir – pelo menos verbalmente, apoio à
Palestina. Até o rei Abdullah da Jordânia, sólido aliado dos EUA e único “amigo”
de Israel que sobrou no Oriente Médio, já disse que “os futuros palestinos são
mais fortes que Israel é hoje”.
Ora, Israel procurou por isso – depois da invasão
do Líbano em 2006, do massacre de Gaza, em 2008 e do ataque à flotilha turca em
2010. Em termos de opinião púbica, Israel está frita – e até a contrarrevolução
árabe teve de perceber.
Inclui-se aí a Casa de Saud. Ninguém menos que o
ex-supremo da inteligência saudita, o príncipe Turki al-Faisal, publicou coluna
no New York Times em que diz claramente, “líderes sauditas serão forçadas por
pressões domésticas e regionais a adotar política exterior muito mais
independente e assertiva”[3] se os EUA vetarem o pedido dos palestinos no
Conselho de Segurança.
O príncipe Turki também destacou que tudo deve
evoluir em torno de uma solução de dois estados baseado nas fronteiras de antes
de 1967 – o que todos os grãos de areia do Sinai sabem que Israel jamais
aceitará.
No caso de os EUA vetarem, o príncipe Turki
ameaçou que a Arábia Saudita “fará oposição ao governo do primeiro-ministro Nuri
al-Maliki no Iraque” e “se separará de Washington no Afeganistão e também no
Iêmen”.
Imaginem, então, a Casa de Saud financiando
prodigamente uma dupla guerra de guerrilhas por todo o “arco de instabilidade”
do Pentágono – sunitas contra xiitas no Iraque, mais os já super hiper
turbinados Talibã no Afeganistão –, ao mesmo tempo em que fazem lobby a favor de
governos islâmicos no Egito e na Turquia; e, isso, enquanto Egito e Turquia, por
sua vez, unem-se plenamente contra uma isolada e furiosa Israel. É. São essas as
tais “dores do parto do novo Oriente Médio”.
NOTAS
[1] “Robust private
sector gives Turkey fastest H1 growth worldwide” Zaman,
12/9/201.
[2] Ver “Turkey: the sultans of swing”, Pepe
Escobar, 7/4/2011, Asia Times Online, em inglês, e “Fazer andar outra vez o fluxo da história”,
Ahmet Davutoglu, Al-Jazeera, 16/3/2011, em portuguê [NTs].
[3] 12/9/2011, New York Time.
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