Entrevista polêmica do pastor Wellington Santos, oito anos atrás

Em 2003, pautei uma entrevista com o pastor Wellington Santos.  Ele é o esposo da pastora Odja Barros, citada abaixo na matéria de Cynara Menezes sobre homossexualidade e fé para a Carta Capital.  
Lembrei-me da entrevista de Wellington, que foi realizada pelo jornalista Gustavo Medeiros, porque naquele momento o diálogo mais intenso com a cultura local representava um atentado tão radical quanto a afirmação, hoje, de que homossexualidade não é pecado.  
Wellington provocou tanta comoção em Natal, oito anos atrás, quanto Odja poderia provocar pela sua fala à Carta Capital hoje:

Um dos preletores do Prosseguir 2003, o pastor Wellington Santos causa polêmica por suas posições. Sua caminhada cristã começou aos 14 anos na Comunidade Mariana. Era um católico ligado à Legião de Maria, e aos 15 anos se converteu ao Evangelho, aceitando Jesus na Igreja Batista. Trabalhou no sertão e com comunidades de periferia, o que lhe deu a base para ter os posicionamentos sociais e eclesiásticos que tem hoje. Formou-se no Seminário Teológico Batista do Norte (STBN), e foi ordenado ao pastorado. Tinha 21 anos à época. Casado e com duas filhas, desde 1993 pastoreia a Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió (AL). Concedeu esta entrevista a Gustavo Medeiros, repórter do Jornal União.

Jornal União: Os cristãos estão inseridos em uma cultura. Alguns acham que a cultura deve ser totalmente moldada pela Bíblia. O senhor acha que a cultura em si é diabólica?
Pastor Wellington: Agora em setembro eu falei no Fórum Popular de Teologia, em Olinda e, coincidentemente, eu trabalhei a Igreja e a cultura popular. Em agosto nós realizamos um Fórum de teologia, na Igreja do Pinheiro e um dos temas foi a Igreja e a cultura popular. A cultura não é nem divina nem diabólica. A cultura é do homem. A gente tem que acabar esse maniqueísmo: ou é de Deus ou não. Na verdade, para mim, tudo que é do homem é mais de Deus do que do diabo. Toda manifestação do homem é uma manifestação de Deus, pois nós somos imagem e semelhança não de satanás, mas do Senhor. Então, essa é uma primeira questão: a cultura, em princípio, não é uma manifestação nem de Deus nem do diabo. Quando se fala em moldar a cultura conforme o padrão bíblico é uma coisa que me preocupa, pois a Bíblia está inserida numa cultura. Numa cultura judaica, oriental, que não tem nada a ver, por exemplo, com nossa cultura nordestina. Há elementos que são universais da Bíblia, que podem ser utilizados para salgar a cultura. Eu ouvi Ivone Gebara, que é uma das maiores autoridades da teologia católica, que falou na minha igreja, inclusive. Ela defende a tese da mistura. Tudo está muito misturado. Ela disse que nós não podemos sacralizar a cultura e nem demonizá- la. Pois, na cultura, há joio e trigo. O que precisamos fazer então? Precisamos preservar o que é trigo e conseguir tirar o que é joio do âmbito da cultura. Para mim, a igreja evangélica é uma grande ameaça à cultura popular.

Jornal União: Por que o senhor acha que a igreja evangélica é uma grande ameaça à cultura popular?
Pastor Wellington: É muito simples. Mais ou menos na década de 1950 e 60, numa cidade chamada Palmeira dos Índios, cidade do estado de Alagoas, se converteu um sanfoneiro. Então disseram para ele o seguinte: ou Jesus ou a sanfona! Ele abandonou a sanfona. Hoje, no estado de Alagoas, para você achar um sanfoneiro é uma coisa raríssima. Então, é engraçado como a igreja evangélica sabe conviver com um piano, que é europeu, e sabe conviver com guitarra, que é norte- americana, e com bateria, que não tem nada a ver com a gente. Isso é um aspecto na área litúrgica. E nessa área, a igreja evangélica não sabe conviver com sanfona, triângulo, zabumba, agogô, repique ou atabaque. Atabaque, então, é visto como coisa da umbanda. Por que na minha perspectiva a igreja evangélica é uma ameaça à cultura popular? Porque tem essa onda de que toda cultura é do diabo. Se o cara agora é crente, ele não pode mais dançar maracatu, maculelê, ciranda nem reggae, que é a grande manifestação do povo maranhense. Ele não pode dançar o côco, que é a grande manifestação do povo de Alagoas.

Jornal União:
O senhor não acha que isso tem a ver com a evangelização do Brasil, feita por missionários protestantes brancos dos Estados Unidos, que trouxeram inclusive a sua cultura, de forma impositiva?
Pastor Wellington: Evangelização ou colonização? A gente fala muito da colonização portuguesa mas, no âmbito protestante, o que houve foi uma colonização norte- americana. Tive um professor que chegou a cometer uma extravagancia em sala, ao dizer que a cultura norte-americana é uma cultura sagrada. Pois, segundo esse professor, quem evangelizou a América foram os protestantes ingleses. Então, nessa perspectiva a cultura protestante é sagrada e a cultura budista, muçulmana e umbandista, do negro e do índio seriam todas do demônio. Isso é um equívoco. O que eu particularmente acho é que como a igreja foi omissa... Por exemplo: como surge a umbanda no Brasil? O negro queria entrar na Missa, mas Missa e Igreja era lugar de branco. Aí o cara ficava do lado de fora. Do lado de fora pode tudo. Então, ele pega os elementos do cristianismo e dá uma mesclada com o que ele conhecia lá da África e gera o que a gente tem. Se a Igreja tivesse aberta hoje não teríamos, por exemplo, bem provavelmente, isso que está aí. Então, se a Igreja se torna omissa e deixa a cultura aí , jogada, não tem como não se deturpar. O meu medo, repito, é que a igreja evangélica, que é mais chegada à cultura Made in Europa ou Estados Unidos, Hong Kong, Coréia do Sul. A gente gosta de importar modelos, tudo menos o daqui. O que é daqui é visto como se não prestasse. Por isso eu acho que a igreja evangélica é uma ameaça à cultura popular. E, ainda tem esse elemento: você agora é uma nova criatura, não pode mais tocar triângulo, não pode mais dançar nem participar de um grupo de quadrilha. Quando falo quadrilha não é aquela do congresso, mas a junina.

Jornal União:
Há manifestações culturais no Brasil e no Nordeste como a capoeira e o reggae, que são mal vistas até por pastores, que as classificam como diabólicas. O que o senhor acha disso?
Pastor Wellington: Racismo. Se a capoeira tivesse sido trazida por brancos ingleses ou americanos, todo mundo dançava capoeira. Mas, como a capoeira é dança de negro e é dança de pobre, então é do diabo. Se você pega o reggae na Jamaica ele é uma música de resistência, de denúncia. Volto a dizer: se o reggae e as músicas da capoeira enaltecem os exus é culpa de quem? Culpa da Igreja que sempre se distanciou. Se a igreja tivesse próxima as músicas da capoeira seriam textos bíblicos. Eu conheço um grupo aqui, na favela do Curado IV, é uma Igreja Episcopal, em que todas as músicas dançadas na capoeira lá são músicas de cunho bíblico. Mas, no fundo no fundo, o problema do reggae e da capoeira é racismo. Essa é a palavra curta e grossa que o povo evangélico quer encobrir. No fundo esse preconceito com a capoeira e com o reggae não tem outro nome não. É racismo! Não é diabo não, é racismo mesmo. É porque é negro e pobre. Então, para essa mentalidade racista, tudo que é de negro e pobre é do diabo.

Jornal União: Alguns argumentam que essas manifestações culturais, como no caso do reggae, geram desordem no culto e por isso não as aceitam.
Pastor Wellington: Desordem em que sentido? Eu estou lendo um livro de Karen Armstrong que eu recomendo, chamado “Em Nome de Deus”. Ela analisa o fundamentalismo nas três grandes religiões monoteístas: Islã, judaísmo e cristianismo. E ela diz uma coisa fantástica: todo fundamentalista é apaixonado por ordem e decência e detesta liberdade de expressão. Tudo que é libertário é considerado desordem para o fundamentalista. Foi em nome dessa ordem que a igreja evangélica em 1964 delatou os membros de sua igreja. É em nome dessa ordem que a igreja se vendeu para os militares durante a Ditadura. É em nome dessa ordem que a igreja evangélica se vende, e prefere o silêncio, a omissão e a covardia. Então essa história que a capoeira e o reggae são desordens é conversa. Isso inclui também o forró, o maculelê e outras manifestações culturais. Essas manifestações culturais não promovem desordem nenhuma. Mas, para quem tem uma mente cauterizada, e que não quer abri-la, isso é considerado desordem. Essas pessoas preferem morrer com a mente cauterizada do que ser aquilo que falou Raul Seixas: uma “metarmofose ambulante”. É melhor ser essa metamorfose ambulante do que ter uma mente fechada acerca de tudo. Lamentavelmente foi Raul, eu gostaria que um pastor que tivesse dito isso. Mas Raul tinha toda razão!

Jornal União: O senhor acha que a igreja evangélica tenta impor uma cultura?
Pastor Wellington: Qual é a cultura evangélica? Ivone Gebara fez essa pergunta. Não existe uma cultura cristã. Um amigo meu me disse esses dias que participou da Festa dos Tabernáculos. Mas isso é cultura nossa? Agora tem que virar judeu a pulso. Tem que virar chassidim, com aquele chapeuzinho e tudo mais. O Israel que eu acredito é o Israel de Deus, que não tem mais terra, geografia. Acabou há muito tempo essa história do lugar, da terra do Templo. Jesus acabou com isso e disse que devemos adorar o Senhor em Espírito e em verdade. Não há cultura cristã. A cultura cristã será a cultura em que o cristianismo estiver inserido naquele momento e lugar. Também, tudo que atente contra a vida e a dignidade do ser humano, em qualquer cultura, deve ser combatido. Se não atenta contra a vida e a dignidade não atenta contra Deus. Essa é que é a verdade. Deus é vida. Portanto, enquanto a dignidade do homem está mantida, Deus está presente.

Jornal União: Se alguém dissesse que o senhor tem um discurso muito comunista, o que o senhor diria?
Pastor Wellington: Se fosse em 1960 e 70 eu ficaria orgulhoso pra caramba (risos). O que seria o discurso comunista, hoje? Cadê os comunistas? A maioria dos comunistas mandaram esquecer o que escreveram. Eu sou admirador de Che Guevara. Sábado eu estava no sertão de Serra Talhada, e lí a biografia do Che. Eu chorei. Olhando para Che, ministro de Estado carregando saco. Eu lí a carta de Che renunciando à patente de General e Ministro. Dizia Che: “Aonde tiver uma injustiça e o povo sofrendo, alí é o meu lugar”. Foi para a África e foi assassinado aqui na Bolívia. O que leva um cara que era médico e de família burguesa a encabeçar uma Revolução? Mas já não tinham tomado Cuba e Fidel não está vivo até hoje? Mas o ideal ardia no peito do cara. Eu achei Che às vezes mais crente que eu. Quantas vezes eu estou defendendo apenas a minha bolacha? Che morreu em nome de um ideal revolucionário. Se disserem que meu discurso é muito comunista eu digo que não: meu discurso é muito cristão. Só que o Jesus que eu leio não é o Jesus esotérico da maioria dos evangélicos. Esse Jesus da maioria dos evangélicos é um místico, da cura do câncer e de sonho e revelação. É o Jesus água com açúcar. Quem morreu na cruz era um zen. O cara já levou tudo na cruz então eu tenho que ficar aqui só recebendo benção. O Jesus que eu creio é o cara que faz a opção logo ao nascer. Nasce numa casa pobre, num estábulo e numa família de marceneiro. Depois, em vez de fazer o caminho do palácio faz o caminho da periferia. Em vez de fazer o caminho do morro da transfiguração faz o caminho dos renegados. Em vez de fazer o caminho da religião faz o caminho da escória. Engraçado é que quem mata Jesus não é a escória, é a religião. Faz o caminho do poder do povo e não do poder institucional. Quem mata Jesus é o poder institucional. Os religiosos de direita induziram o povo a gritar Barrabás, para deixar Jesus morrer. O Jesus que eu creio é o Jesus de pés empoeirados, que lida com o pobre e que confronta todo o poder instituído que oprime. O Pacto de Laussane pregou esse Jesus. O que ele dizia era: “O Evangelho Todo, para o homem todo e para todas as nações”. O problema é que a Teologia da Libertação e a Missão Integral do Evangelho foram sufocadas. O Vaticano dilacerou a Teologia da Libertação. Dom Hélder Câmara sofreu isso. Engraçado é que a Renovação Carismática não tem apoio do Vaticano, mas como junta gente, é tolerada. A igreja evangélica está no mesmo caminho. Eu não tenho nada contra o pentecostalismo. Tenho amigos e colegas como Ricardo Gondim e Carlos Queiróz que são pentecostais mas são engajados. Mas sou contra essa igreja neo-pentecostal, alopradérrima, que fica lutando contra demônios imaginários, ungindo postes entre outros, em vez de combater o coronelismo, a fome e as desigualdades reais. Isso é mais fácil. Pra mim, a opção da igreja evangélica foi pelo caminho mais fácil. É melhor brigar com o que não se vê do que encarar o governador corrupto e o juiz ladrão.

Jornal União: Há líderes evangélicos que discordam de que evangélicos escutem músicas como Jackson do Pandeiro, Tribo de Jah e Luíz Gonzaga, pois classificam esse estilo de música do mundo. O que o senhor acha disso?
Pastor Wellington: Parece até que deram minha discoteca lá de casa (risos). Lá em casa eu sento com minhas filhas, e ponho elas para ouvir Jackson do Pandeiro, Luís Gonzaga, Antônio Nóbrega e há pouco tempo eu fui apresentado musicalmente à Tribo de Jah. Lá em casa eu sempre digo que nós não ouvimos lixo. Nem lixo secular, nem lixo gospel. Tem muitos CDs que me deram por aí e que eu não joguei fora por questão de delicadeza, e não vou fazer a maldade de presentea- los para alguém. Mas também há os que eu ouço. Há CDs evangélicos que eu não ouço. Na verdade há mais heresia à doutrina e teologia em muita música auto- intitulada gospel do que na Música Popular Brasileira, entre outras. Quando as pessoas falam em não ouvir música do mundo, eu sempre digo que ainda não consegui ouvir música de Júpiter, Marte. No dia que lançar um CD de algum desses planetas, talvez eu consiga. Então, um evangélico que seja aluno de Psicologia não pode ler Freud e Jung, por eles não terem morrido crentes? Um aluno de Jornalismo e Sociologia não vai poder ler Marx? Aí vai dizer o que para o professor? Meu pastor disse que é do mundo?

Comentários

Anônimo disse…
Muitíssimo interessante! Adorei ter lido essa entrevista! Até um tempo desses frequentava bastante a Igreja Evangélica mas, com a percepção de diversas injustiças que acontecem mundo afora e a falta de ação da igreja terrena em lutar pelos direitos do povo, pelo oprimido, me fizeram eu não aguentar mais o discurso propagado ali. Comecei a me senti uma extraterrestre por começar a entender a existência do neoliberalismo, de uma visão hegemônica de mundo que explora os pobres. Pois bem, foi essa nova visão que me fez amar verdadeiramente meu próximo. Há tempos estou atrás de uma igreja na minha cidade, João Pessoa (Paraíba), que tenha um discurso comprometido verdadeiramente com as questões sociais, que não sirva apenas para o "crescimento espiritual das pessoas", mas não to encontrando. É legal perceber que tem pessoas que pensam parecido comigo.
Unknown disse…
Boa palavra e para mim, nada de polêmica!

Stella Cabral disse…
Quanta heresia numa entrevista só!