@MiguelNicolelis:"O pesquisador precisa apenas pesquisar, não ser professor ou administrador"



O homem de expressão grave que recebe a reportagem de CartaCapital no saguão de um hotel em São Paulo tem muito a dizer sobre a ciência no Brasil. Aos 50 anos, Miguel Nicolelis já foi considerado um dos 20 maiores cientistas do mundo pela revista Scientific American, uma gigante na área. Devemos ouvir falar bastante nele nos próximos anos. É de Nicolelis o projeto de interface entre cérebro e computador mais próximo de fazer um ser humano paraplégico voltar a andar, o que ele pretende fazer até a Copa do Mundo de 2014, no Brasil.
A história desse paulistano do Bixiga mostra que ele não veio ao mundo a passeio. Após se tornar um aluno-prodígio de graduação e doutorado na Faculdade de Medicina da USP, nos anos 1980, brigou com professores da instituição que, no seu entender, faziam parte de uma estrutura arcaica e nociva ao desenvolvimento científico. “Exilado” na Filadélfia, deu prosseguimento a uma carreira brilhante que culminou como chefe de laboratório da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, e do Instituto de Neurociências de Natal (RN), o IINN-ELS.

A criação do instituto potiguar é um capítulo à parte de sua carreira. Mais que um projeto profissional, faz parte de um ideal pessoal de Nicolelis, que sonha em produzir conhecimento científico aliado ao desenvolvimento social de uma região carente – o IINN está numa região bastante pobre da capital potiguar e preza o envolvimento de toda a comunidade.
CartaCapital procurou o maior cientista brasileiro para entender por que é tão difícil produzir ciência no Brasil. Somos vistos como um gigante emergente econômico lá fora, mas estamos aptos a nos tornarmos também um produtor de conhecimento científico? É um passo fundamental para o Brasil passar da classificação “emergente” para “desenvolvido”. Quais são os grandes gargalos da universidade brasileira para isso?
Dois são os motivos que tornaram Nicolelis apto a responder estas questões, talvez melhor que ninguém no País. Primeiro, é um cientista bem sucedido que passou pela experiência acadêmica no Brasil e nos Estados Unidos, este último reconhecido como o grande exemplo na área. Segundo, é integrante da Comissão do Futuro, um braço do Ministério da Ciência e Tecnologia que está mapeando a nossa vida acadêmica para torná-la dinâmica e palatável ao cientista.
Ao receber o repórter, Miguel Nicolelis sentou-se num sofá, pediu uma limonada e concentrou ouvidos e olhos, estes verdes como as cores do clube pelo qual é fanático torcedor, o Palmeiras, para responder didaticamente cada uma das perguntas.

Einstein não seria top Brasil

Na primeira parte da entrevista, o cientista Miguel Nicolelis relata os problemas burocráticos que encontrou quando fez graduação e doutorado em Medicina na USP, nos anos 1980. Diz que o Brasil melhorou de lá para cá, mas a estrutura engessada da academia brasileira ainda é muito refratária à boa prática científica. Não há mais espaço para o mestrado, acredita. E critica o atual sistema do CNPq, que prioriza a quantidade e não qualidade dos trabalhos. “Einstein só teve cinco teses até 1905. Assim não seria considerado um pesquisador top no CNPq”, diz.
CartaCapital: Como era fazer ciência no Brasil na época em que o senhor estava na faculdade, nos anos 1980?
Miguel Nicolelis:
 Era muito difícil porque, no Brasil daquela época, tudo tinha que passar pelos chefes de departamento, que eram professores titulares (na Faculdade de Medicina da USP, onde se graduou). Não havia como fazer nada sem estar sob a tutela ou sob a proteção de algum dos catedráticos. E isso era muito difícil, porque a maioria deles era de médicos, alguns muitos bons médicos, mas sem formação cientifica. E o espírito era muito feudalista. Eu bati de frente com um dos professores, que foi o motivo de eu sair do Brasil. Tornei-me pessoa non grata do departamento. Tive a sorte de, no primeiro ano de pós-doc lá fora, ter um trabalho publicado na revista Science. E isso causou uma reação em cadeia oposta do que eu esperava…
CC: Ciumeira?
MN:
 A mensagem era “nem volte, porque você não vai ter espaço nenhum aqui”. E então decidi ficar nos Estados Unidos. Se eu voltasse, ficaria no “closet” (gíria da academia para designar profissionais sem função).
CC: O que exatamente houve para sua saída da USP?
MN:
 Eu não vou entrar em detalhes porque não vale a pena, são disputas acadêmicas. Nós estávamos criando uma nova disciplina dentro da faculdade e claramente fomos considerados, eu e mais alguns, uma ameaça. Ameaça de progressão na carreira, estávamos fazendo algo muito novo, uso de computadores em medicina. Estou falando de vinte tantos anos atrás. Mas eu senti o peso que era você realmente conseguir fazer alguma coisa. Quando comecei a publicar alguma coisa de peso, na universidade que eu estava (a Hahnemann, da Filadélfia), meu orientador de pós-doutorado me disse: “Não te querem lá (no Brasil) mas nós te queremos”. Foi lá que desenvolvi o primeiro passo nessas interfaces cérebro-máquina. E seis meses depois eu recebi a oferta da Universidade de Duke (Carolina do Norte, EUA), onde eu estou até hoje.
CC: E o senhor entende que essas dificuldades eram específicas da USP ou do Brasil como um todo?
MN:
 Aquilo era muito específico do Brasil naquela época. Era muito difícil você ascender na carreira. Melhorou muito. Mas ainda não é o que a gente espera, eu acho.
CC: O que melhorou nesses 30 anos?
MN: Arejou um pouco. Acabou-se com essa figura do catedrático. As pessoas têm carreiras individuais, como nos EUA. Você não compete mais com o cara do seu lado, você trabalha com ele. Você compete, sim, com o campo de atuação. Tem os caras no mundo inteiro fazendo o que você faz, todos tentando levar o campo pra frente. Mas não é com o fulano do seu lado, do seu departamento. O meu departamento tem seis ou sete pessoas titulares, e ninguém fica contando cota de professor titular. É uma progressão natural, uma carreira feita para cada um.
Ainda temos estruturas hierárquicas de poder na academia brasileira que são reais, coisas que não existem mais em outros lugares. Exemplo: pesquisadores ranqueados pelo CNPq, o que não existe em nenhum lugar do mundo. Não conheço rankings de pesquisadores fora daqui, não existem privilégios. Eu compito com meninos de 20 ou 30 anos que estão começando a carreira para todas as linhas de financiamento, para todas as benesses que o governo americano tem para a ciência, é igual. Outro exemplo: na área de biomedicina, o mestrado acabou. Nas grandes universidades americanas e européias é raríssimo. Na realidade o mestrado acaba sendo um caminho de escape para quem fez o doutorado e não deu conta da brincadeira ou não quis prosseguir, ou um comitê de tese achou que não tinha mesmo condição. Ai vira um mestrado. Mas não existe mais um investimento estratégico em mestrado.
CC: Como é feita a ponte entre a graduação e o doutorado no mundo científico lá fora?
MN:
 A pessoa sai da graduação e vai direto para a pós-graduação no doutorado. Na minha opinião, o mestrado no Brasil é usado erroneamente para suprir as deficiências da graduação. Eu só posso falar pela área de biomedicina e ciências naturais, não pelas Humanas, por exemplo. Lá fora a graduação é feita de tal maneira que se faz o mestrado dentro da graduação. E se você quer ser cientista, seguir uma carreira acadêmica docente, você sai direto para o doutorado. Também vejo que o mestrado passou a ser uma forma de se manter gente trabalhando a um custo muito baixo por aqui. Uma mão-de-obra barata, o que infelizmente acontece até no doutorado. Acredito que os projetos de pesquisa no Brasil têm de contemplar contratação de pesquisadores por períodos fixos por projeto. Esse é um debate enorme, mas é o que movimenta a ciência no mundo todo. Nós temos de enfatizar estrategicamente o doutorado e o pós-doutorado. Nós não damos a ênfase devida ao pós-doutorado, que é realmente o motor científico do mundo lá fora. No meu laboratório, os grandes atores, diretamente trabalhando comigo na estratégia do experimento, são os pós-doutores. Eles são treinados por três anos para serem pesquisadores independentes. Esse é o treinamento mais importante que você tem antes de virar um pesquisador que tem o seu próprio laboratório. Então ai você não valoriza o cara que responde o que está escrito no livro. Você não valoriza aquele cara que diz amém, você valoriza o cara que está pensando independentemente.
CC: Mas o sujeito pensa independentemente porém segue uma linha de pesquisa, confere?
MN:
 Claro que tem uma estratégia global do laboratório, porque ele é parte de um laboratório, principalmente os grandes. Mas o individuo está criando a infraestrutura intelectual e de gestão científica que ele vai aplicar quando tiver a sua própria “padaria”, que é o que um país como o nosso precisa. Precisamos ter doutores e pós-doutores com iniciativa, com independência, que não ficam esperando a ordem do chefe. Que vão e fazem. Isso é o que revolucionou a ciência americana.
CC: E não é o que se vê no Brasil, onde o pesquisador é condicionado a seguir uma cartilha.
MN: 
Nós aumentamos muito a nossa produtividade científica, mas ainda não sou do grupo de pessoas – e isso é uma divergência intelectual – que avalia a qualidade da ciência de um país pelo número de trabalhos. É evidente que é importante você ter uma massa capaz de comunicar resultados internacionalmente em revistas de boa qualidade. Mas o que é mais relevante é o que está escrito ali, porque, caso contrário, você cria um círculo vicioso de pedir dinheiro para continuar produzindo um papel que tem influência muito pequena na comunidade científica ou, mais adiante, na sociedade. Então você tem de ter uma base muito ampla de gente produzindo ciência. E gente produzindo ciência de base, abstrata, tem de ter nas ciências naturais, porque ciência aplicada não existe sem essa base enorme de gente pensando. Temos bons exemplos de países que investiram pesado em ciência de base e educação acopladas, como Coréia do Sul, Finlândia, Noruega… Os EUA são o maior exemplo disso. Na ciência de base é de onde se extrai as idéias que vão ter aplicação. Todo componente de alta tecnologia que a gente usa diariamente veio de coisas que o cara que fez a pesquisa do micro-processador original ia imaginar que desse nisso. É uma reação em cadeia imprevisível. Eu não consigo dizer pra você, se você me der 100 programas de pesquisa de 100 laboratórios, quem dali vai produzir algo que vai ser aplicado na sociedade. Agora, eu posso falar pra você quem daqueles 100 são caras para apostar. Isso é fácil de fazer.
CC: O senhor entende que o critério do CNPq é equivocado, portanto.
MN:
 Isso, porque não é o número de trabalho que conta. Eu brinquei, e o pessoal caiu na minha cabeça, que o Einstein não seria pesquisador 1A (nível top) no CNPq porque a fórmula, que é uma fórmula de economista (quantas teses publicadas, quantos alunos de graduação, quantos papers publicados), o coitado não preenchia. Ele só teve cinco papers até 1905. Só que cada um desses valia um Prêmio Nobel. O que ele fez mudou o mundo. Charles Darwin, com dois ou três livrinhos, mudou o mundo, e ele levou 60 anos para escrever aquele livro. Quem ia financiar o Charles Darwin? Então ainda vejo reflexos do final dos anos 80 presentes na nossa vida acadêmica. Inovamos pouco e criamos poucas linhas de pesquisa originais e seguimos muito linhas que vêm de fora. Só que nós temos aqui áreas fundamentais para a humanidade nos próximos 100 anos, temos uma Embrapa. A produção de alimentos, recursos hídricos, biodiversidade, ar, clima, tudo isso o Brasil pode ser líder – em algumas já é – mas pode ser líder mundial dessa tal ciência tropical, como eu gosto de chamar. É onde nós inovamos.

Pesquisador precisa apenas pesquisar

Na segunda parte da entrevista exclusiva de Miguel Nicolelis ao site da CartaCapital, o cientista brasileiro fala sobre seus objetivos como integrante da Comissão do Futuro, um braço do Ministério da Ciência e Tecnologia para tentar reformular a produção científica brasileira.
Nicolelis analisa a dificuldade que um pesquisador tem no Brasil e diz que o cientista precisa apenas fazer ciência se assim o quiser, e não dar aulas ou se preocupar com questões administrativas. Também defendeu que a bolsa de estudos vá diretamente para o estudante, e não para as instituições. “Assim o estudante vai levar com ele o recurso dele para onde ele quiser”.
CartaCapital: A educação no Brasil parece ser ainda um gargalo para o desenvolvimento científico…
Miguel Nicolelis: Nós ainda não democratizamos a pós-graduação. Os mais jovens, das camadas menos ricas da população, devem ter acesso a pós-graduação, e isso não ocorre porque esse problema vem do ensino médio. O ensino de ciência ainda é muito deficiente no Brasil. A ciência matemática ainda é vista como uma coisa que nenhuma criança quer aprender. A única verdade que exista no cosmos é a matemática. Temos temos uma deficiência muito grande nessa captura, em fazer as crianças se apaixonarem pela ciência ou por qualquer atividade intelectual profunda. E daí temos uma deficiência da graduação universitária que tenta ser corrigida com o mestrado, o que se arrasta a ponto de você ver gente fazendo o doutorado aos 50 anos. Isso não é bom para o país.
CC: Uma das críticas é que, no Brasil, há muitas teses de doutorado que se encerram em si, não tem aplicação social.
MN: Isso é um problema sério, mas não seria só no Brasil. Outro é seguir linhas de pesquisa, esse é outro problema. Exemplo: alguém descobre um novo barato lá nos EUA. A nossa tendência é copiar os caras. É muito raro seguir uma ideia inovadora aqui que os caras lá fora vão seguir. O Brasil tem um alto número de teses publicadas (acho que é o 12º do mundo) e já passamos, por exemplo, a Suíça. Só que os suíços têm uns 50 prêmios Nobel e institutos de pesquisa tradicionais com produções importantes. O passar em número de trabalhos significa muito pouco. Não é um avanço desmerecido, mas, como diz um amigo, tem que ver o “suco de miolo” que existe ali dentro.
CC: E comos e reformula essa estrutura problemática?
MN: Acho que nós temos exemplos de agências financiadoras que são modelos. A Fapesp talvez ainda seja a melhor do mundo em termos de custo direto e indireto, no sentido de que, de cada dólar investido nela, uma fração muito alta, de oitenta a noventa centavos desse dólar, vão para a ação direta de pesquisa e o restante vai para a taxa administrativa. Esse custo indireto administrativo é muito pequeno, mas ele precisa existir. Na universidade de Duke, de cada um dólar que eu consigo, 56 centavos vão para a Duke fazer a administração do projeto e investir em equipamento de base, prédios novos, luz, tudo o que é necessários para manter o meu laboratório funcionando. Ou seja, 56% é a taxa administrativa, que é alta. Não precisa ser isso. Mas você precisa ter no mínimo 20% de um projeto de pesquisa dedicado a infraestrutura administrativa, prestação de contas.
CC: Essa taxa administrativa desafogaria a produção científica?
MN: Essa taxa seria para pagar o cara que vai fazer a contabilidade, outro que vai fazer a prestação de conta, pagar luz, água, pagar coisas que você não paga com o dinheiro do projeto de pesquisa. E no projeto de pesquisa você tem de poder contemplar gente. E tem de ter maleabilidade para mover dinheiro de capital para custeio facilmente. Quando preciso comprar um equipamento que eu não imaginei que fosse precisar no início do projeto, preencho um papel, ligo para a Duke, alguém faz o rebudget e no dia seguinte euo compro. Aqui isso é impossível. Existe a rigidez em todos os níveis: no orçamento, nas normas, nos procedimentos. Isso emperra a nossa expansão intelectual científica, na minha opinião. Nós criamos um site para a Comissão do Futuro (confuturobr.org) e em um mês e meio nós tínhamos 3,5 mil pessoas da comunidade dialogando, entrando em grupos de pesquisa. Eu tenho lido isso religiosamente, vendo o que as pessoas estão escrevendo e eu estou tentando fazer um sumário para apresentar na próxima reunião com todos os membros. E dá para ver o engessamento de coisas triviais. Se você não for dinâmico, você não compete com o mundo. Essa é a grande vantagem dos EUA.
CC: Isso está mudando no Brasil?
MN: Sem dúvida. O fato de os EUA manter apesar da crise econômica, essa produtividade científica, é pelo fato de você colaborar lá ser muito fácil. Hoje está difícil conseguir dinheiro, mas quando você tem um projeto, a agência trabalha com você, e a universidade trabalha para te ajudar o máximo possível. O seu laboratório é a estrela do show, eles querem que o dinheiro deles resulte em coisas importantes. A universidade tem um departamento de projetos que faz a prestação de contas, que lida com qualquer outro tipo de necessidade de transferência de recursos, que aciona as bolsas que você precisa.
CC: E como funcionam as bolsas de estudo?
MN: Em relação a isso, os alunos interagem diretamente com a agência de financiamento. Não tem a intermediação do diretor do programa de pós-graduação. Esses não põem na mão de uma pessoa o poder de distribuir bolsas dentro do programa local, porque isso gera muitos problemas. Nós estamos ouvindo histórias do arco da velha pelo Brasil afora. O individuo que vai pedir uma bolsa para o governo brasileiro tinha, na minha opinião, que interagir diretamente com a Caps, com o CNPq. Ele vai provar se tem o mérito ou não e, se ele ganhar a bolsa, vai ser dele. Então se ele decidir ir para a USP ou para a Universidade Federal do Amapá, é ele que vai levar com ele o recurso dele. As universidades querem recrutar esses meninos e meninas não só porque eles são bons, mas porque alguns deles já têm financiamento. Você põe o poder na mão de quem realmente tem que ter o poder, o estudante. Aqui tem essa visão de tudo ser muito concentrado, difícil. Então a avaliação dos projetos não tem normas claras, os comitês de pares em alguns casos são restritos a pesquisadores 1A. Entendeu?
CC: E nos EUA funciona como?
MN: Lá, para receber a bolsa, você receber um parecer no momento em que o grupo se reúne e julga o seu projeto. Você recebe o seu score, ou seja, você pode saber em qual posição está com os outros, e receber comentários que justificam porque você ganhou ou não dinheiro. É transparente. A comunidade científica dialoga continuamente com essas agências de financiamento em reuniões específicas, para informa-las quais as novas áreas que precisam receber dinheiro. Então as coisas não vem de cima pra baixo, do tipo: “Ah, hoje nós vamos financiar isso, se vira aí, você tem 30 dias para fazer um projeto”. Quando a gente recebeu as chamadas dos institutos nacionais, que foi um dos maiores eventos de financiamento científico da história do Brasil, nós soubemos com 30 dias de antecedência que tínhamos entregar o projeto. Como você põem um projeto desse tamanho em pé em 30 dias? Isso dá para implementar no Brasil.
CC: Como está a sua relação com o ministro Mercadante?
MN: Tem sido ótima. Nós tivemos liberdade total para convidar especialistas tanto brasileiros quanto os estrangeiros para aprimoramento. Criamos uma plataforma via internet para entrar em contato com as pessoas, e com ela tomamos um baque assim de cara porque nem tudo o que eu tinha na cabeça, é o que a gente viu quando a comunidade começou a falar, contando suas histórias e pesadelos.
CC: Qual o seu objetivo para a Comissão do Futuro?
MN: Espero que a gente consiga um relatório que abra as portas e os ouvidos dos gestores de ciência do Brasil para a vida cotidiana do cara que está lá do outro lado da ponta. Essa iniciativa de se criar uma legislação própria para a prática de ciência no Brasil é uma coisa excelente. Ela surgiu recentemente, eu acho que tem um projeto para o Congresso agora. Espero que ela crie normas e procedimentos específicos para a prática de ciência, o que existe no mundo todo. Por exemplo, as universidade federais não foram criadas para ser universidades de pesquisa, como são as universidades líderes no mundo. Elas foram na realidade criadas como universidades para a formação de recursos humanos, de profissionais liberais. Então você não tem uma estrutura de universidade de pesquisa, não tem departamentos administrativos, aporte e suporte para que um pesquisador seja só isso, um pesquisador. Hoje este tem que ser professor, com uma carga horária enorme, porque esse é o emprego principal, ai ele tem que fazer pesquisa quando der e ser administrador, porque ele tem que também gerar algum tipo de recurso. E agora ele tem que ser um inovador, ele tem de ter um startup. Só que ninguém é treinado para isso. Imagine esse cara tendo que se virar para fazer tudo ao mesmo tempo e ainda ter tempo para escrever projetos para o CNPq. Lá, na minha universidade, por exemplo, existe um departamento administrativo que faz a prestação de contas, que me ajuda a escrever a proposta pelo orçamento, em termos que a agência pede. E eu só pesquiso, eu só gasto o dinheiro. E os meus alunos também.
CC: E quanto a relação entre a iniciativa privada nos EUA e aqui no Brasil?
MN: Nos EUA, este investimento é metade-metade, excluindo o que gasta o Departamento de Defesa, que é altíssimo. No Brasil é  quase nada.
CC: Nos EUA existe uma cultura do investimento privado na ciência, portanto.
MN: Sim, o montante vindo de doações privadas é muito pequeno. Mas é a indústria investindo em inovação e ciência que ela vai tocar pra ela.
CC: Por que isso não ocorre no Brasil?
MN: Não há uma cultura. A gente inova muito pouco, com a exceção da Petrobrás e algumas poucas outras.
MN: Será que as empresas daqui não buscam isso lá fora?
CC: Eu não saberia dizer. Mas todos os grandes países em termos de inovação e pesquisa agem assim. Existe também uma defasagem muito grande de empregos científicos na iniciativa privada. Hoje o Brasil forma 30 e pouco mil engenheiros, bem menor que a demanda. E talvez um terço tenha condições de entrar no mercado de trabalho, e muitos dos que se formam vão para o mercado financeiro. No Brasil não existe empregos de pequenas e médias empresas de tecnologia, de engenharia, de microeletrônica, de nanotecnologia para empregar engenheiros para serem engenheiros. Existe um ciclo vicioso ai que fez o Brasil perder vários trens, como o trem da microeletrônica. Hoje temos uma dependência de microprocessadores que é terrível, e temos que reverter isso, porque vai se transformar numa questão vital. O talento humano nós temos. Nós não temos as oportunidades, as práticas e os procedimentos para dar vazão a esses talentos.
CC: Trazer cientistas estrangeiros para o Brasil é uma solução?
MN: Sim, temos que acabar com essa história de reserva de mercado. Os EUA fizeram isso no começo do século XIX e foi o início da revolução da ciência americana. Se não tivessem aberto as portas aos cientistas do mundo todo, não teriam a infraestrutura de ciência que têm hoje. Isso para nós é essencial, arejar, trazer gente que está disposta a trabalhar no Brasil em outras normas e procedimentos.
O Brasil não é ainda uma destinação do mercado de trabalho científico mundial, mas ele está começando a dar a sensação que pode ser. A escola de Altos Estudos do MEC é inovadora. Nós vamos formar, por exemplo, um programa de pós-graduação em neuroengenharia, neurotecnologia e neuroeducação com 71 professores do mundo todo. Os nossos alunos vão poder ter acesso a professores que vão vir aqui por tempo determinado para dar os seus cursos, que, na minha geração, e eles só teriam acesso se fossem para Harvard ou Princeton, entre outras.
CC: O senhor parece ser um otimista com as perspectivas da ciência no Brasil.
MN: Eu sempre sou otimista, mesmo em 1988 eu era otimista. Eu fui embora do Brasil sempre achando que eu ia voltar. O Brasil tem que criar mecanismos onde o menino talentoso do doutorado não dependa do chefe do departamento de pós-graduação para saber se ele vai ter bolsa ou não. Para que não dependa do favor, entendeu?
CC: A história da ciência no Brasil tem o paternalismo da própria história do Brasil, né?
MN: É pior que isso. É você deixar esse poder concentrado numa mão e essa pessoa usar esse poder de maneira incorreta. Tem histórias que eu ouço por onde eu passo que são assustadoras. A gente tem que dar a bolsa para o talento. O menino tem que ir lá e passar na pós-graduação em, vai lá, Manaus, ele ganha a bolsa do governo brasileiro e ele tem na mão dele o poder de falar “olha, eu quero fazer isso e trabalhar com aquele cara, porque eu tenho o meu dinheiro”. Ninguém vai dizer com quem eu vou trabalhar. Eu vou escolher. E se eu não gostar daqui eu pego o meu dinheiro e vou lá para o Piauí. Porque lá tem o cara que eu quero trabalhar. Só isso você mudaria muito a equação. Você desconcentra e você põe o poder no cara que tem a paixão de fazer a coisa acontecer. Eu prefiro confiar nos alunos que estão entrando no doutorado por paixão do que no coordenador da pós-graduação que há 40 anos está naquela máquina, distribuindo benesses. Eu não acredito em benesses, eu acredito naquele moleque que quer fazer um doutorado sério. E eu não acredito nesse negócio de distribuir cotas de bolsas para instituições. Tem que ter o máximo de bolsas possível, mas se tiver um cara mais brilhante no Piauí do que o cara do Rio Grande do Sul, a bolsa tem que ir pro Piauí.

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