#OcupaUSP: Invasão da reitoria da USP e reintegração de posse: princípios, sentidos e mídia nos limites da racionalidade democrática.



Por Ivan Furmann
No Blog Assessoria Jurídica Popular

0. Não é fácil para mim escrever sobre qualquer tema polêmico. Primeiramente porque dependo materialmente de muitas pessoas que discordam do que penso. Por outro lado tenho pessoas que dependem de mim. E no nosso mundo intolerante pensar diferente é sempre correr riscos de sofrer pelo que se pensa. Por isso muitas vezes não escrevo sobre diversos temas por medo de sofrer represálias. Também não escrevo porque sinto que cada pessoa parece que tem sua própria visão de mundo e não está disposta a ouvir as demais. Essa desilusão em relação ao diálogo é um pouco motivada pela enxurrada de intolerância que a internet escancarou. A todos aqueles que discordam da minha opinião reitero que o diálogo e a pluralidade de opiniões tende a criar um mundo melhor. Discordem do que falo mas lutem pelo direito de que possa falá-lo.1. Primeiramente vale a pena pensar sobre o motivo da invasão da reitoria da USP. Obviamente existe um complexo de razões ideológicas e de fato que levem algumas pessoas a não concordar com a minha simplificação, mas na fala dos estudantes o protesto se deve a presença da Polícia Militar ostensiva no campus da USP. Até aí a versão da mídia geral e da fala dos estudantes é similar. Porém o motivo pelo qual a presença da PM é daninha é posta de forma diferente.

O discurso da mídia de massa apresenta a versão de que os protestos são contra a prisão de estudantes por fumar maconha no campus e que o governo do Estado e a polícia estão cumprindo os seus deveres evitando que dentro do campus não se aplique a lei geral do Brasil. Portanto seria a garantia de que a USP não seria um espaço sem lei e sem ordem.

Fico pensando se a partir dessa lógica não deveríamos colocar PMs vigiando os camarins do Projac ou os bastidores do Rock in Rio. Talvez prender os turistas no carnaval carioca. Até quando vamos fingir que as drogas não movimentam boa parte da sociedade brasileira e que o seu combate é extremamente seletivo? Quantos policiais estão trabalhando ostensivamente para acabar com o consumo de crak na cracolândia em SP? Hipocrisia à parte, a utilização de entorpecentes só existe no Brasil e em todo o mundo ocidental graças a um princípio básico, o princípio da privacidade e da intimidade. Por mais que as leis tentem negar algumas liberdades, dentro do espaço privado a vida não consegue ser contida pelas leis. E fica a pergunta: a USP é um espaço privado? Obviamente não, porém existe a intimidade e privacidade básica de qualquer espaço social. Reitero que não uso e nem incetivo o uso de qualquer substância entorpecente, de cigarro a alcool, em nenhum lugar. Porém a quebra do princípio da privacidade e da intimidade na principal instituição de ensino superior do Brasil ressalta a violação de um princípio profundo de liberdade individual que está sucumbindo diante da militarização da realidade.

A segurança só pode ser conseguida com a presença de policiais militares treinados para combater assaltantes de banco, assassinos e traficantes armados? Algo está muito errado quando a paz só é atingida quando usamos o recurso da força policial estatal.

2. Ao que parece a solução para o problema da violência na USP é simples. Assim como em qualquer espaço acadêmico ou escolar, quem faz a segurança local são inspetores civis, não armados, contratados para cuidar da segurança das pessoas e do local. Não é preciso andar armado ou ter treinamento militar para garantir a segurança dentro de um campus universitário.

Quando pessoas armadas ou violentas invadem esse espaço, como em qualquer outro local, basta chamar a polícia militar para cumprir seu dever constitucional de proteger os cidadãos. Isso condiz com o acesso igualitário ao serviço público. Da forma que ficou estabelecido o convênio com a USP a polícia militar faz o papel de segurança privada. Isso é correto?

Se o problema é a segurança no campus, a USP deveria contratar funcionários, no padrão de inspetoria e não de vigia de banco, para fazer tal atividade. O mais correto seria contratar funcionários públicos. Sou contra atividade tercerizada, porém até mesmo isso seria uma solução menos ruim.

Qualquer ação além dessa é desnecessária e pressupõe que os estudantes são tão perigosos quanto marginais e exigem pessoas assim preparadas para combatê-los. Aliás, foi mobilizada uma força policial maior para invadir a reitoria da USP do que foi utilizada para invadir o pavilhão 9 no lamentável episódio do massacre do carandiru. Será que o espaço do campus da USP é uma zona de violência tão explícita?

Na imagem dos meios de comunicação de massa a USP é uma macolândia. Não se faz nada lá a não ser incentivar playboys mimados (nas palavras de Dimenstein) e maconheiros a jogar dinheiro fora lendo Michel Foucault. Eu ainda desconfio que o capitão nascimento é dono de alguns jornais e portais da internet brasileiros.

3. Quando Hannah Arendt, aliás muito lida no setor de humanas da USP, discute o movimento de luta por direitos civis nos Estados Unidos, ela faz uma diferenciação entre a desobediência civil a desobediência criminosa.

Primeiramente ela apresenta algumas semelhanças entre ambas. Ambas são contrárias à lei majoritária. Ambas sofrem repressão direta do aparelho repressivo do Estado, em outras palavras, da polícia. Ambas serão, na maioria das vezes, contra-majoritárias.

Porém existem diferenças. A desobediência criminosa pretende um ganho individual, para tanto é feita de forma disfarçada ou oculta. Não tem pretensão de dialogar com o espaço público. A desobediência civil ao contrário é feita de forma explícita e pública. É exatamente para direcionar os olhos da opinião pública que ela não é feita escondida. Também não objetiva interesses individuais, mas um ganho social. É sobre esse ganho que se pretende mobilizar pessoas. A única característica da desobediência civil que não se identifica ao movimento americano é a “não-violência”. Porém, como chamar a atenção da mídia e da reitoria de forma pacífica? Como controlar o impulso de uma ira senão justa pelo menos justificável?

A violência utilizada para os atos de desobediência civil sempre foi um dos grandes problemas desse tipo de mobilização. Martin Luther King Jr. propunha evitar qualquer tipo de violência. Mas muitas vezes isso acaba sendo inviável. Alguma violência residual vai ocorrer no momento em que você desafia uma ordem existente. Até mesmo porque violência não se identifica com destruição física, as vezes a violência simbólica agride mais do que a física. Mobilizar uma massa sempre é lidar com sentimentos, algo além do racional.

Câmeras quebradas ou pichações, será que isso em si caracteriza uma ação criminosa? No limite, danos materiais e excessos podem ser investigados e responsabilizados civilmente caso a caso. Nesse caso, os danos materiais devem ser restituídos materialmente falando. Porém, devido ao objetivo em si de protestar publicamente, tal fato não constitui crime, nem mesmo descaracteriza o movimento como um movimento de desobediência civil.

4. A reintegração de posse foi justificada pela mídia de massa como uma ação legítima de cumprimento de ordem judicial. Porém os termos da sentença foram cumpridos?

Segundo o jornal Brasil de Fato, a sentença da juíza apresentava alguns critérios:

“A ordem de reintegração foi emitida pela juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti, da 9.ª Vara da Fazenda Pública Central. Segundo ela, a desocupação deveria incluir participação de representante dos ocupantes e outro da reitoria, e o uso de força policial poderia ser feita somente "como medida extrema".” (http://www.brasildefato.com.br/content/tropa-de-choque-invade-reitoria-ocupada).

A minha pergunta é a seguinte: Quem descumpriu ordem judicial? A invasão da PM ocorreu de madrugada, portanto em horário considerado ilegal, tendo em vista a impossibilidade de reintegração no período noturno. Sem representantes das partes a invasão da reitoria acabou sendo algo obscuro. Móveis quebrados? Coquetéis molotof? Quem garante que tais coisas foram realmente feitas pelos estudantes ou pelos policiais na invasão?

Além disso, considero a decisão da juíza equivocada e patrimonialista. Não teve uma visão ampla nem social da situação. Escorou-se de forma rasa em texto legal. Afirmo mais, essa ação de reintegração de posse ao invés de pacificar a USP pode causar mais túmulto e problemas mais graves e complexos. Se a função do juiz de Direito é pacificar e pensar no Estado de Direito como um todo, essa sentença não foi correta. É ingenuidade pensar que os alunos da USP vão simplesmente abaixar as cabeças e aceitar a polícia militar no campus com base em reintegração de posse. Temo que o uso da força estatal e o fim do diálogo aumente a tensão e cause problemas mais sérios à instituição. O que é lamentável. A greve geral é o primeiro sinal. A decisão da juíza fracassou. Qual será a próxima decisão do poder que defende o Estado de Direito? É proibido se manifestar!?


5. De tudo o que ocorreu, o que me deixou mais chocado foram os comentários feitos as reportagens dos jornais de mídia de massa. Estou me sentindo um extraterrestre. Afirmações preconceituosas em relação a USP. Em relação aos alunos da USP. Em relação ao movimento estudantil. Em relação a qualquer forma de protesto social. Essa chuva de afirmações intolerantes parecem ter virado moda na internet. Tem pessoas que acreditam que estão fazendo sucesso despejando preconceitos e visões estereotipadas. Mera ilusão.

Também é preciso pensar se a mídia de massa não estimula esse tipo de público. Com reportagens imbecilizantes sobre atrizes globais, gatas do brasileirão e culto ao fetichismo consumista.

De tudo o que se passou, os comentários deveriam simplesmente lamentar o ocorrido. Seria o civilizado. Ao menos aqueles que se consideram assim diante dos arruaceiros da USP justificariam seu discurso. Até mesmo seu Alckmin. Que moral tem ele de afirmar que os alunos deveriam ter aula de respeito ao dinheiro público? Quem foi o responsável pela maior parte das privatizações do governo Covas, por preços abaixo de mercado? Isso é respeito ao dinheiro público? Parece que esqueceu de explicitar o custo das suas operações militares. Quanto custou? Será que o uso da força custa menos que algumas câmeras de vigilância destruídas pelos estudantes? Será que o diálogo custaria mais? Os custos aos contribuintes de São Paulo será muito maior devido a falta de diálogo do Sr. Governador. Pois não será tão simples assim resolver esse problema.

6. Nem na época da ditadura militar a USP foi invadida por policiais militares assim. Nem mesmo nos primeiros dias do golpe de 64 tantos apoiaram ações militares de forma tão fútil. Mesmo numa sociedade democrática estamos perdendo algo importante. A pergunta que fica é “O que estamos perdendo?” Eu sinceramente não sei responder. Perdemos algo de profundo que nem mesmo o autoritarismo tinha coragem de tirar. Talvez o respeito à universidade como espaço social de liberdade de pensamento. Se não temos mais um espaço para pensar livremente, temos um espaço para pensar? Ou será que devemos nos privar disso em prol da segurança garantida pelos capitães nascimentos?

7. A greve geral estudantil é apenas o começo. Violência e força não resolvem o mundo. Sem diálogo, sem solução.

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