A Copa das falácias, ou o inesperado incômodo da ESPN

Não foram poucos os quiproquós e alvoroços causados pelos primeiros episódios da série "Areia movediça: a Copa sob as dunas", produzido pela ESPN Brasil sobre as obscuridades dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 em Natal, transmitidos semana passada e já disponibilizados na rede mundial de computadores. Alheia ao consórcio local de forças político-econômicas que não apenas sucumbe, mas se orgulha de ser um mero títere dos interesses multinacionais da FIFA, a emissora esportiva expôs o chorume que corre nas artérias que irrigam as atividades preparatórias para a Copa denunciando infindáveis violações e desrespeitos à população local que, por sua vez, são ignorados por um considerável naco do jornalismo potiguar.
De pronto, foi arregimentado um exército de vassalos para, nas mídias informativas e redes sociais, desacreditar a iniciativa da ESPN em mostrar que, diferentemente do que muitos propagam, a Copa do Mundo no Brasil não será a maravilha que costumam anunciar com uma empáfia pouco vista até mesmo nesta terra, onde coronéis e oligarcas são, até hoje, enaltecidos como verdadeiros monarcas.
A primeira estratégia, capitaneada pelo Sr. Jean Valério, titular da Secretaria Municipal da Juventude, Esporte, Lazer e Copa do Mundo da FIFA (SECOPA), foi, em conversa com a própria ESPN, procurar tachar os jornalistas da emissora como estrangeiros atrevidos e insuflados pelo mais puro preconceito contra Natal e o Nordeste. Estratagema ginasial diante da completa impossibilidade de refutar as incontestáveis situações de abuso apresentadas nas matérias veiculadas pelo canal esportivo. Para ser mais preciso, o trigésimo segundo dentre os trinta e oito trazidos por Schopenhauer (1780-1860) em sua indispensável obra "A arte de ter razão", cujo fim é exatamente o de desarmar eventuais estelionatários da razão que, no limiar de suas vaidades, fazem uso desse tipo de recurso: classificar a opinião de seu adversário como alguma categoria odiosa aos olhos da coletividade e do senso comum, tais quais fascista, nazista e, no caso em tela, racista.

O segundo, não menos infantil, foi de exaltar o Rio Grande do Norte como suposta potência esportivo-futebolística ‒ mesmo diante da completa ausência histórica de políticas públicas estaduais e municipais de fomento ao esporte amador e da pouca estrutura dos dois maiores clubes locais para disputar campeonatos de ponta e se consolidar em competições nacionais. O intuito do secretário, obviamente, era passar a ideia de que a magnitude dos nossos clubes condiz com o pleno gozo do "Arena das Dunas" no Pós-Copa, uma vez que,  ainda segundo o Sr. Valério, os times têm grande potencial e reconhecimento em competições nacionais e torcidas e recursos suficientes para usar do estádio com a naturalidade ínsita às grandes agremiações.

O fato é que o Sr. Valério briga com os próprios fatos ao fazer afirmações tão estapafúrdias. Outro fato atordoante é o grau de comprometimento de parte da imprensa potiguar com os conglomerados políticos ‒ considerando que foi necessária a vinda de uma equipe jornalística de fora do estado para expor os efeitos colaterais da Copa e suas quixotescas mazelas à própria população local.

Qual é a credibilidade de meios que se omitem diante das atrocidades cometidas contra a própria sociedade da qual fazem parte?

Outro recurso retórico contra a ESPN que também pudemos notar nas redes sociais e que, certamente, ainda muito se observará contra os que de alguma forma se levantem contra os abusos da Copa, é o de que aqueles que criticam a forma com que o evento vem sendo construído em nossa capital têm a pretensão de, na verdade, se colocar como algozes do progresso e desenvolvimento da cidade. Tal artifício, batido e de fácil neutralização, pode ser identificado como a falácia do homem de palha ou do espantalho, e consiste em distorcer o posicionamento do seu oponente, criando um homem de palha que venha a representar as suas argumentações. O espantalho, figura inerte e de estrutura física frágil, é vulnerável a toda sorte de ataques, atendendo perfeitamente às conveniências do debatedor em desvantagem. Isto porque é incapaz refutar a verdadeira tese da outra parte, recorrendo assim a uma representação enganosa da mesma a qual poderá atacar sem maiores problemas. Trata-se, simplificadamente, de rebater o que a outra parte não alegou.

Menos esperto que Jean Valério, entretanto, foi Demétrio Torres, responsável pelas obras da Copa em âmbito estadual. Em embate com jornalistas da ESPN transmitido ao vivo na edição vespertina do Bate-Bola (pela mesma emissora) logo após a transmissão da primeira reportagem da série, pudemos ver um secretário acuado ante os inúmeros questionamentos dos apresentadores, chegando ao ponto de, constrangido, reconhecer a injustiça das desapropriações e reputá-la como consequência de uma legislação também injusta, deixando claro que sua preocupação, como gestor público, é apenas cumprir a lei, pouco importando o quão nefasta ela seja. Foram minutos tensos, marcados por inúmeras tergiversações do Sr. Demétrio ‒ acostumado com a condescendente mansidão bovina da imprensa local ‒ e pelos contrapontos do apresentador João Carlos Albuquerque e dos jornalistas Antero Greco e Lúcio de Castro, agora alçados à condição de anticristos da Copa em nossa cidade.

Veremos, agora que está mais do que evidente que a Copa (principalmente da maneira pela qual vem sendo arquitetada) não é uma utópica unanimidade, como se portarão as autoridades responsáveis e a população que, vítima da opacidade institucional que lamentavelmente lhe sonega informações sobre seu próprio futuro, começa a receber as primeiras luzes de uma realidade até então desconhecida. É uma pena que iniciativas como essas sejam tão tímidas no próprio elefante.

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