O Brasil “de baixo” da música de Chico Anysio


Era um dos muitos quadros do cômico programa de TV Chico City. Satirizava abertamente uma turma MPB bem personalizada nas figuras dos tropicalistas baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, assim como seus discípulos mais imediatos, os Novos Baianos de Moraes Moreira, Galvão, Baby Consuelo, Pepeu Gomes & cia. Satirizava-os com alguma crueldade e laivos de racismo (antibaiano), homofobia e bullying, embora os dois últimos termos nem existissem no Brasil de 1974.

A dupla do esquete de humor se chamava Baiano & Os Novos Caetanos. O cearense Chico Anysio, sob o apelido "Baiano", usava bata e cabelão à moda de Caetano, Gal Costa ou Maria Bethânia. O pernambucano Arnaud Rodrigues, "Paulinho", vinha com pinta de cantador de porta de igreja, sarará, meio Lampião, quase preto, quase Gil.

Era gozação. Mas, à parte os personagens e as gags, Chico e Arnaud compunham e cantavam à vera. Talento musical à flor da pele, o quadro humorístico logo enveredou para discos abundantes, brasileiramente ricos, desmembrados em trilha de Chico City (1973) e Azambuja & Cia. (1975), quatro LPs como Baiano & Os Novos Caetanos (1974-1985), um de Baiano & Amaralina (1977), vários álbuns solo de Arnaud (1970-1989) e assim por diante.

É espetacular o legado musical desses dois caras, ambos mortos de hoje em diante (Arnaud morreu em 2010, num acidente de barco num lago em Tocantins, no Centro-Oeste brasileiro). As piadas passaram; cearenses, pernambucanos e baianos não brigam mais na televisão e nos discos; o racismo, a homofobia, a misoginia e o bullying estão sob ataque cerrado e merecido. A musicalidade de Chico & Arnaud, no entanto, era fabulosa e resta intacta nos downloads da vida (se os ministérios da Cultura e da Justiça deixarem).

A música mais conhecida desses malucos-beleza é a primeira do primeiro disco, batizado simplesmente E? e lançado em 1974 pela Cid (e mais tarde pela Som Livre, a gravadora da Globo, que costuma reeditá-lo em CD de tempos em tempos). Chama-se "Vô Batê pa Tu" e é até hoje um sucesso em festas e bailes onde se apreciam a música dita black, o samba-rock e outas variáveis de samba mestiço, miscigenado, "impuro". É música popularíssima, como foram por décadas os programas de humor pilotados pelo Chico-ator.

"Eu vô batê pa tu batê, pa tu batê pa tua patota", exclama a certa altura o personagem encarnado por Chico na canção. A leveza é compensada pela barra-pesada da letra, de referências mais ou menos cifradas ao processo de subversões, terrorismos, perseguições, torturas e delações na clandestinidade das ruas e nos porões da ditadura: "Deduração/ um cara louco que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo/ com quem não tenho grandes ligações".

Composta por Arnaud com melodia do samba-roqueiro Orlandivo, soa como uma alfinetada dirigida em cheio ao também popularíssimo cantor Wilson Simonal, acusado de dedurador alinhado aos militares – e, ironicamente, preso e condenado naquele mesmo 1974 pelo mesmo regime que ajudava a apoiar e suportar. Também curiosamente, Chico era amigo pessoal de Simonal, e foi um dos poquíssimos artistas a ir à prisão prestar solidariedade pública ao cantor. Choraram juntos, segundo rezam as lendas dessa até hoje misteriosa trama.

"Vô Batê pa Tu" é um baita sambão-rockão, mas está longe de ser a única riqueza da lavra musical de Chico, Arnaud e parceiros. (A propósito: no início da carreira de compositor, ainda nos anos 50, Chico era interpretado por Dolores Duran, que gravou "Manias" (1955) e "A Fia de Chico Brito" (1956), esta última relançada por Elis Regina em 1971).

A mestiçagem musical era o mote dos Novos Caetanos, tão tropicalistas quanto os originais, embora agressivamemte críticos a eles. A nordestinidade de seu som era mais que baiana, era… nordestina – e nortista, mineira, pantaneira, paulista, carioca, daqui, dali e de acolá. "Folia de Reis", por exemplo, entrega o que o nome promete. "Ciranda" se queixa nominalmente de "saudades" de uma dezena de artistas baianos, enquanto canta, pernambucaníssima, que "esta ciranda quem me deu foi Lia/ que mora na ilha de Itamaracá".

"Urubu Tá com Raiva do Boi" e, sobretudo, "Selva de Feras" são forrós de chão pisado, na mais completa tradição de Luiz Gonzaga. "Nega" é samba-soul pós-festival, pós-Jorge Ben (que, mais ironia, completou ontem 70 anos). "Véio Zuza" é samba-rock de macumba, chão batido de senzala sem casa-grande. "Tributo ao Regional" fecha o LP em compasso plangente de choroi, sob versos potentes: "Não há considerações gerais a fazer/ tá tudo aí/ tá tudo aí/ para quem quiser ver/ (…) chia, chia/ meu cavaquinho/ pia, pia/ minha flautinha".

Em 1975, saiu o Volume 2, obra-prima que a Globo tem deixado perdida (para sempre?) nos arquivos da Som Livre. Começa com a surrealista e novamente cifrada "Perereca", sambaião ambientado numa lagoa do Central Park de Nova York, sobre "filha de um sapo-boi com uma sapa-vaca", "filha daquela que foi sem nunca ter sido", referências audíveis ao uso de maconha, coisa e tal. Os palhaços nordestinos surrados, tristes de tanto fazer rir, transpiram baianidade à maneira de Jorge Amado, Tieta do Agreste, Dona Flor ou Gabriela, Cravo e Canela.

"Forró" se auto-explica, levanta a poeira, toca e canta a sanfona nordetina. "Sete Luas" e "Apocalipse" visitam a religiosidade católica, mas cabocla e interiorana. (No ano seguinte, 1976, Caetano, Gal, Gil e Bethânia se agrupariam como Doces Bárbaros e sairiam pelo Brasil em turnê classificando-se em canção cono "os quatro cavaleiros do após-calipso". Gil terminaria a jornada preso e condenado por usar maconha.)

"Violamania" evoca, amorosíssima, toadas e modas de viola do Brasil não-litorâneo. "Entardecer na Fazenda" causa impacto, entre cantos de pássaros, cigarras estilizadas, sanfona sertaneja, cores ("céu vermelho é o sangue das cores vistas nos arredores salpicadas de sol"), moda caipira de bruta e fértil extração.

"Ameriqueiro" e "Yo No Quiero Saber" celebram a música brasileira pela via latino-americana, em vez da anglo-saxã, com pandeiro, cuíca, tumbadora, agogô e… rock'n'roll. "Três Macaquinhos", atual como nunca no Brasil ministerial de um outro Chico (o Buarque), espicaça com rancor a cultura, a música e a intelectualidade que se fazia de mouca ao Brasil enforcado de 1975: "Três macacos juntos/ na sabedoria/ eles me ensinaram/ a sabedoria/ um que nada ouve/ não ouviu, se cala/ um que nada vê/ outro nada fala, fala, fala".

A crítica exala perfume autocrítico adjacente, aplicável a baianos, novos baianos, caetanos & novos caetanos (e chicos), de esquerda, de direita e de centro: "Eu, que nada ouço,/ não ouvi e não falo/ eu, que tudo vejo,/ tudo vejo e calo, calo, calo/ tô, tô, tô, eu tô na minha, tô, tô/ falô?". Deduragem parece ser, de novo, o tema driblado, mas chutado em escanteio sabe-se lâ de onde e para onde. Da toada "Fala" (1973) dos Secos & Molhados aos silêncios do Brasil atual, Baiano & Os Novos Caetanos resistem a seus humoristas e artesãos, como um intrigante e preservado segredo público.

P.S.: O autor deste texto repete o mesmo equívoco cometido semanas atrás, quando refletiu sobre a música e obra do cantor e compositor mineiro Wando apenas depois de sua morte – nunca antes. Clichê dos clichês desde tempos imemoriais, ajudamos a sufocá-los e matá-los com nossos silêncios (que, afinal, são também os deles),. Depois, os pranteamos como se não houvesse amanhã.


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