Um desembargador do TJRN

Ivan Maciel de Andrade - advogado

Lembro-me de que, na condição de Procurador-Geral de Justiça, estabeleci amizade com todos os Desembargadores que compunham àquela época o Tribunal de Justiça do Estado. O presidente da Corte era o Desembargador Paulo Luz. Poderia dizer que ele era um grande jurista, estudioso e conhecedor dos diversos ramos do Direito que aplicava no exercício de sua atividade jurisdicional. Mas na verdade era muito mais do que isso. Escrevia de forma concisa e objetiva, num estilo que lembrava - sem despropósito - o de Graciliano Ramos, talvez pelo fato de que esse era o autor brasileiro de sua preferência, cujas obras me confessou haver lido e relido diversas vezes. Nas inúmeras conversas que tivemos, antes ou depois das sessões do Tribunal, descobri que Paulo Luz era um grande leitor, que conhecia como poucos a nossa literatura, a portuguesa e, através do francês, os clássicos europeus e norte-americanos. Mas, ao lado de sua grande curiosidade intelectual, que abrangia também a leitura de ensaios de filosofia, de história e de economia política, havia outra característica que o particularizava: a integridade de um homem humilde, mas corajoso, afirmativo, capaz de desafiar pressões ou intimadações de qualquer tipo para se manter fiel a seus princípios éticos, à sua consciência de magistrado, ao espírito de justiça que sempre o orientou e à intransigente correção com que desempenhava o seu cargo. Tinha conhecimentos jurídicos, inteligência, estatura intelectual e qualidades morais que o credenciavam a integrar qualquer dos altos Tribunais do país -  inclusive o STF - com grande brilhantismo.

Certa vez, no exercício da presidência do Tribunal, Paulo Luz ouvia o voto proferido com acentuada ênfase por outro Desembargador e esboçou um riso que pareceu depreciativo ao colega que se excedia em gestos e palavras grandiloquentes. O Desembargador que votava suspendeu a sua exposição e indagou se Paulo Luz estava debochando de seus argumentos ou da forma como os expunha. Paulo Luz tranquilamente pediu desculpas pelo riso, que considerou involuntário e explicou que nunca imaginara que um tema de Direito Civil, com ásperos e embaraçosos meandros técnicos, pudesse ser tratado com tanto entusiasmo e exaltação. Cumprimentou, então, o Desembargador mal-humorado pela aptidão em usar sua magnífica oratória na abordagem do Direito tão sóbria e pragmaticamente criado pelos romanos. Diante desse elogio, o Desembargador que interrompera ressentido a prolação de seu voto, retomou-o, já apaziguado e visivelmente satisfeito, usando a mesma veemência e empolgação de antes. Como a cadeira do Procurador-Geral ficava ao lado da do presidente, Paulo Luz escreveu um comentário e disfarçadamente empurrou-o em minha direção. Era uma frase breve, que dizia mais ou menos: "Quanta palavra oca para tão pouco Direito!" Um modo de ver típico de seu temperamento contido e antirretórico.

Outra vez, fiquei impressionado com a profundidade e erudição de um voto de Paulo Luz, no qual os melhores traços literários apareciam discretamente em meio aos raciocínios jurídicos. Elogiei o voto e sugeri que ele o publicasse numa revista de Direito de âmbito nacional. Ele baixou a cabeça, num gesto que era muito seu quando refletia, e me disse: "Bondade sua, mas para me dispor a publicar teria que ser um trabalho feito com mais pesquisa, com posições originais, numa linguagem de maior rigor técnico-jurídico." Não insisti. Sabia que era essa sua verdadeira convicção - uma espécie de implacável autocrítica - e não mera desculpa para fugir à sugestão que lhe fizera. Confidenciou-me, em outra ocasião, que sonhava em transformar sentenças e votos escolhidos em trabalhos jurídicos capazes de justificar a publicação em livro. Vivia, entretanto, sobrecarregado com o número de processos que tinha para julgar e chegara à conclusão de que esse seria um projeto para pensar depois da aposentadoria. Não sei de ninguém que correspondesse melhor ao perfil ideal de um magistrado do que o modesto, culto, honrado Desembargador Paulo Luz...

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