Violação de direitos nas obras da Copa

O ideal de defender o interesse público acima de tudo é o que está levando a procuradora do município de Natal, Marise Costa de Souza Duarte, a tomar posições diferentes das adotadas pela própria prefeitura, quando o assunto é a Copa do Mundo de 2014. Mestre em Direito Público e doutora em Urbanismo, ela questiona a forma como estão sendo conduzidos, na capital potiguar, os projetos relativos ao maior evento esportivo do mundo. Para Marise, os natalenses estão tendo o direito à gestão democrática violado. A falta de informações sobre como serão executadas as obras, principalmente as de mobilidade urbana, também tem preocupado a procuradora, que é membro do Comitê Popular da Copa. A postura questionadora adotada hoje, foi a mesma que fez com que ela denunciasse ao Ministério Público, em 2007, um dos maiores esquemas de corrupção de Natal. O resultado foi a famosa Operação Impacto que condenou 16 pessoas, entre elas, 12 atuais e ex-vereadores.


Foto: Fábio Cortez/DN/D.A Press

















Diário de Natal - Como surgiu seu interesse pela área de urbanismo?

Marise Costa - Por onze anos eu fui chefe da Procuradoria de Meio Ambiente do município de Natal. Então, a partir da minha atuação nesta área, eu me apaixonei. Fiz doutorado, publiquei dois livros, inclusive, um está sendo lançado no final do mês. Em função dessa minha atuação, eu resolvi investir nos estudos das questões ambientais urbanas.

Atualmente a senhora participa do Comitê Popular da Copa?

Participo sim. É uma articulação de instituições que tem como objetivo que a Copa aconteça sem violar os direitos humanos. E esse Comitê está inserido em uma articulação nacional. Nas 12 cidades sede existem comitês populares para fazer o contraponto com a iniciativa governamental, que muita vezes desconsidera algumas questões essenciais do ponto de vista dos direitos humanos.

Qual o seu papel no Comitê?

Esse Comitê tem uma coordenação de seis pessoas e eu estou dentro dessa coordenação geral. Comopesquisadora da universidade eu estou coordenando com outras colegas que têm estudos nas questões urbanas da cidade há muito tempo.

O Comitê já fez algum levantamento sobre que tipo de direito do cidadão está sendo violado em razão das obras da Copa de 2014?

O comitê foi criado em abril de 2011, e de lá para cá, a gente tem tido uma ação permanente. A gente já encontrou várias violações de direito. Primeiro é a questão de publicidade e transparência, e a gestão democrática da cidade que não está sendo implementada.

Isso é um problema local ou nacional?

Isso é um problema nacional. Eu separei um dossiê que a articulação nacional fez. Foi publicado mês passado e Natal está nele. O dossiê relata em todas as cidades sede as violações que estão existindo.

Qual o conteúdo desse dossiê?

A gente mandou algumas questões fundamentais sobre ações do Estado e do Município com relação à implementação da Copa. É inconcebível a falta de transparência dos processos. Eles não têm publicidade e não dão oportunidade dapopulação participar. A partir da Constituição Federal, a gente tem uma outra forma de pensar a cidade. A Constituição dá um arsenal de normas, para que a partir de então a cidade seja construída de forma democrática. Projetos, planos e programas não podem ser pensados apenas no gabinete. Por imposição legal eles são pensados no gabinete e submetidos à população, mas não é o que está acontecendo, principalmente com as obras de mobilidade do município. A gente inicia o dossiê falando nisso. Mandamos vários fatos comprovando essa situação. A questão do direito à moradia. Inicialmente eram 600, depois 428, e passou agora para 449 desapropriações e a gente não tem uma clareza com relação aos desapropriados, não tem clareza quanto aos critérios de desapropriação, não tem clareza quanto a população que vai ser desapropriada e grande parte da obra está dentro da área de interesse social (regiões onde moram pessoas que vivem com renda entre zero e três salários mínimos). No caso da obra do corredor estrutural Oeste,ela passa dentro de ums área de interesse social. Essa população é fragilizada, e no momento em que essas desapropriações são feitas sem um pagamento justo e prévio, elas não vão ter dinheiro para comprar um imóvel nessa mesma área, porque ela vai ter sido supervalorizada.

A senhora acha o valor que o Município está oferecendo é injusto?

Não existe ainda um valor. Sabe-se o seguinte: que existe no orçamento do Município uma rubrica para pavimentação no valor de R$ 21 milhões. Mas o próprio município disse que serão necessários R$ 45 milhões. De R$ 21 milhões para R$ 45 milhões a diferença é muito grande. A Constituição diz que as desapropriações, que é uma forma legal de intervenção do poder público na sociedade, não pode ser feita desarticulada de toda uma legislação. Essa é a grande questão. Certeza que da forma como está sendo colocado existem poucas informações disponibilizadas e não existe dinheiro suficiente para o pagamento da indenização justa e prévia. Isso é inegável.

O que vocês sabem de concreto sobre as desapropriações?

A gente sabe o que está saindo no jornal. Todo dia entro no site da Prefeitura e do Governo do Estado e não tem nada. O que está saindo no jornal é que existe um numero "x" de imóveis que tiveram a caracterização.

A senhora conhece alguém desses imóveis caracterizados?

Conhecemos porque foram pessoas que se dirigiram ao Comitê. As pessoas que vão ser atingidas procuraram o Comitê levando a cartinha que eles tinham recebido. Eles não têm informações concretas sobre quanto vai custar o imóvel. Qual o critério que está sendo utilizado para o pagamento das desapropriações? Qual o valor do metro quadrado? O que deveria ser considerado na avaliação desses imóveis? Toda legislação do direito à moradia está atrelada ao direito à cidade. Não é justo que quem está há 50 anos não consiga se reinstalar naquele local, e precise ir para outro município. No final de 2011, nós constituímos a Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras da Copa (APAC) e já tem uma série de ações. É bom que fique claro que a gente não é contra a Copa em Natal. Mas que não achem que as obras que chegarão em função da Copa podem ser realizadas sem atenção à legislação.

A senhora acha que as desapropriações são o ponto mais crítico em relação às obras da Copa?

Eu acho. As desapropriações e os projetos de mobilidade. Segundo a legislação, os projetos de mobilidade são projetos urbanísticos que atingem o conjunto da cidade. É um grande projeto de intervenção urbana, que primeiro deveria ser submetido à discussão pública, ter um processo de licenciamento ambiental, nos locais que fosse atingir uma área de preservação permanente, que a gente já sabe que vai ter, que é o mangue do Potengi. É uma série de normas que são obrigações do poder público.

Já que faltam alguns estudos, o projeto está incompleto?

Faltam estudos. Se você tem um grande projeto de mobilidade urbana que vai atingir determinadas áreas de interesse social e área de interesse ambiental, você teria que ter estudo para que se verifiquem alternativas.Existe só essa possibilidade? Poderia ser feito em outra área que não desapropriasse tanto? Tudo isso que é fundamental do ponto de vista da legislação não foi feito.

Todas as informações que vocês precisam saber enquanto comitê são repassadas pelo Município ou pelo Estado?

Não.

Qual a medida que vocês podem tomar para conseguir acesso a essas informações?

Existe um grupo de pessoas, que faz parte de um projeto de extensão da universidade chamado Escritório Popular, e já está estudando para verificar as ações judiciais possíveis. Existem medidas concretas, mas eu acho que a população tem que compreender que no momento em que ela não atua, e não grita contra esse estado de coisas, ela vai sofrer as consequências disso nos próximos 30 anos. A gente tem um endividamento do Estado e do Município enorme. Ele vai impedir que a gente faça outras coisas na cidade por mais 30 anos.

A senhora acredita que a população está apática?

A população está omissa. Essa coisa da Copa tem um certo glamour, ai as pessoas ficam um pouco anestesiadas. Mas a sociedade de um modo geral está esquecendo de verificar as consequências diante desse gastos excessivo.

Até o momento a gente não tem nenhum obra de mobilidade de fato. De certa forma isso não preocupa o Comitê, a necessidade da obra ir aumentando e terminar sendo feita de forma emergencial, e por isso sem licitação?

As obras estão sendo pensadas e já estão licitadas, elas estão sendo consideradas pelo poder público como essenciais. A gente entende que não é. O que a gente quer é que sejam pensadas, junto com a empresa que elaborou os projetos, alternativas como diz a legislação. Outra coisa importante, a gente tem no Plano Diretor um capítulo só sobre mobilidade urbana. Diz que o município de Natal no prazo de dois anos deveria elaborar sua política e fazer seu plano, e que todas as obras da cidade deveriam obedecer essa política e esse plano. A política não foi elaborada e o plano, dizem que existe, mas a gente não sabe onde está. Parece que existe por parte do poder público um resistência muito grande em publicizar as coisas.

A senhora acha que o poder público não tem essas informações?

Não é que não tenha. Algumas coisas não têm, é o caso desse plano de mobilidade. Outras coisas, nós estamos entendendo que existe uma necessidade de não colocar isso de forma clara, para que essa demora venha a impulsionar uma rapidez na aprovação. Vai chegar uma hora que não tem mais tempo e a justificativa vai ser essa.

Era sobre essa justificativa que eu tinha lhe perguntando. O comitê não tem receio que ela seja usada para obras sem licitação?

Quando nós nos reunimos com alguns secretários municipais, inclusive o de obras, e a gente cobrou alternativas, ele disse que agora provavelmente não desse mais tempo. Então deveria suspender o que está fazendo e discutir sobre o assunto. Mas o que a gente nota, é que para a sociedade existe toda uma disposição em conversar. Por outro lado, a gente fica sabendo que as desapropriações precisam sair em 60 dias. Cadê as alternativas?

A senhoraacredita que essas desapropriações vão sair no prazo apresentado pelo Município?

Não existe tempo suficiente para isso. Vinte processos estão concluídos para irem à Procuradoria. São apenas 20 processos dos 449. Existem R$ 21 milhões no orçamento, mas o município declarou que são necessários R$ 45 milhões.

Como procuradora do município a senhora não enfrenta nenhuma "saia justa" por estar no Comitê?

Sou concursada, faço parte do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública há muitos anos, e para a gente é muito claro que uma coisa é o interesse do município ente público. Esse eu tenho certeza que defendo. E o outro é o interesse da gestão da ocasião. O procurador do município não é obrigado a defender o interesse da gestão. Ele é obrigado a defender o interesse público. Há um ano eu estou em uma procuradoria administrativa que não tem nada a ver com as questões discutidas no Comitê. E assim, pelo fato de ser pesquisadora da universidade, professora, eu me acho com algum conhecimento para contribuir com essasdiscussões. Se - e às vezes é compreendida - a minha atuação na minha área acadêmica é vista como "saia justa", eu não considero que seja, porque eu não tenho nenhuma obrigação de fidelidade com os interesses da gestão. Eu tenho obrigação de fidelidade com os interesses do município.

A senhora nunca foi questionada pela gestão em relação ao seu papel no Comitê?

Não. Até porque a gestão é transitória e eu sou efetiva.

Foi com esse pensamento que a senhora se tornou uma das denunciantes da Operação Impacto?

Na ocasião, o vereador Sid Fonseca me procurou e contou o crime que estava acontecendo. Eu fui até o Ministério Público fazer a denúncia. Eu fui cumprir a minha função de procuradora, que é zelar pelo interesse público. Na época, eu era chefe da Procuradoria do Meio Ambiente e trabalhava com o governo da ocasião, na elaboração de um Plano Diretor que estava sendo revisado. Nós construímos um projeto de lei pensando o que era melhor para a cidade e na Câmara a gente viu pontos essenciais sendo completamente ignorados sem nenhuma justificativa. A gente achou que era uma coisa estranha. Então, no momento que eu fui procurada, e ele disse o que estava acontecendo, como eu poderia não denunciar a quem era de direito? Se eu via que o fato de estar sendo modificado o projeto de lei estava acontecendo em função das ações de corrupção.

A senhora gostou da sentença?

Não é gostar ou não gostar. Eu acho que o juiz analisou bem o caso e sentenciou bem. Ele fez de uma forma aprofundada e responsável e analisou bem a denúncia do Ministério Público. Eu acho que essa decisão foi emblemática para cidade, até do ponto de vista pedagógico.

O que foi feito até hoje do Plano Diretor revisado em 2007?

Na verdade o Plano Diretor não foi implementado. As leis que precisam ser editadas, ainda não foram. O que existe é um trabalho sério da Semurb, através dos seus técnicos, para regulamentação de algumas Zonas de Proteção Ambiental (ZPAs). Durante cinco anos não foi regulamentado nada. Essa omissão na regulamentação do plano está levando a essa situação que a gente tem agora.

O Plano Diretor deveria ter começado a ser revisado em 2011. Nós já começamos esse processo?

Não. Para se fazer a revisão precisa ter um diagnóstico da cidade. O que aumentou? O que tem de infraestrutura? É preciso partir de um diagnóstico para se chegar a uma proposta.

A senhora acha que começa esse ano?

Muito difícil.

A gente demorou de 1994 a 2007 para fazer a revisão. A senhora acha que vai demorar esse espaço de tempo outra vez?

Pelo que a gente está vendo, a coisa está difícil.

Na próxima revisão o que a senhora acha que deve mudar em relação às áreas polêmicas do Plano Diretor passado, como Ponta Negra e Zona Norte?

Não se deve mudar sem saber o que evoluiu da estrutura. Como se tratou o trânsito nessas áreas. Seria muito precipitado dizer o que deve mudar. Mas o que vejo é que pouco evoluiu em termos de infraestrutura. Os dois pontos são polêmicos pela situação incomum de ser dito que estão brecando o desenvolvimento dessas duas áreas. Existe falta de compreensão do que se permite nessas duas áreas. Com o coeficiente de 1.2 você pode construir edifícios de até 22 andares. Acontece que hoje o mercado quer cada vez mais prédios altos para o retorno ser maior. Não existe essa disponibilidade de construir com o coeficiente que se tem.

Como a gente consegue casar o desenvolvimento sustentável tão falado com os interesses do mercado imobiliário?

A gestão pública tem que coordenar esse processo. A partir de uma discussão sobre a cidade e viabilizando ações no âmbito interno da administração para que toda essa compatibilização seja possível. Sentar com o mercado, com os estudiosos da área urbana, da área social e pensar alternativas para esse desenvolvimento e não um crescimento de forma insustentável. Essa conservação do âmbito da administração pública não aconteceu. A discussão não fez o movimento de pensar a cidade e saber se poderia avançar em algumas áreas. Eu acho que é possível implementar e criar uma cidade que tenha essa preocupação de desenvolver e possibilitar a atuação do mercado imobiliário, respeitando as áreas ambientais e de interesse social.

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