PEC 37: A Emenda da Insensatez e os pés de Curupira

Por Lenio Luiz Streck

Apresentando a Nau.
Para quem não sabe, lembro. A Nau dos Insensatos é uma alegoria que
descreve o mundo e seus habitantes como uma nau, cujos passageiros
nauseabundos não sabem e nem se importam para onde estão indo. Vejam:
eles não se importam! Na verdade, a Nau dos Insensatos (Das
Narrenschiff) foi o primeiro best-seller da história, fora a Bíblia.
Escrito em 1494 por Sebastian Brant, é um relato ácido da sociedade de
então. Cada um dos 112 capítulos tem um endereço. Fala das falácias da
Justiça, das injustiças da Igreja, a patifaria, os maus costumes, a
vulgaridade dos nobres... Brant era formado em Direito. Sabia das
vicissitudes das leis. E do "sistema". Dividido em 112 capítulos
curtos, cada qual dedicado a um tipo de louco ou insensato, o livro
proporciona uma leitura provocadora e divertida.

Pois olhando a PEC 37, que visa a detonar/implodir o poder
investigatório do Ministério Público, o único livro ao qual posso me
remeter é a Nau dos Insensatos. É realmente espantoso que essa PEC
navegue por aí. É uma insensatez.

Não iria escrever sobre esse assunto. Tenho um livro sobre isso,
escrito em parceria com Luciano Feldens (Crime e Constituição, Ed.
Forense), lá pelos idos de 2003-4, que chegou a sua terceira edição.
Há decisões do STF. E do STJ. Há boa doutrina também. De todo modo,
diante do quase-silêncio da comunidade jurídica sobre o perigoso
avanço da PEC da Insensatez, tive que voltar ao assunto. E o faço
agora. Na forma da Constituição.

O Brasil e a impunidade. Paraíso do proxenetismo com o dinheiro público.
O Brasil sempre foi o paraíso da impunidade. O sistema de estamento,
já denunciado por Raymundo Faoro — e que aqui não me canso de replicar
— ainda representa forte obstáculo à aplicação do princípio da
igualdade. Não por menos aqui impera o foro privilegiado (recuso-me a
usar o eufemístico "foro por prerrogativa de função"), pois
materialmente, haja vista o sistema estamental, a elite termina por se
imunizar pela baixa persecução criminal nas esferas superiores da
jurisdição criminal. Não por menos, temos a triste prática de quedar
antes a impunidade dos malfeitos no próprio STF. Preciso lembrar que
na nossa Corte Suprema, até hoje, passados mais de 200 anos, não há
caso de condenação que tenha aplicado, efetivamente, pena privativa de
liberdade? Acho que não. Enquanto isso, há 240.642 presos por crimes
contra o patrimônio. A realidade é inescondível: fala por si. La ley
es como la serpiente; solo pica a los descalzos (desculpem-me pela
repetição da frase do De La Torre Rangel).

Contudo, de poucos anos para cá se nota uma mudança de paradigma. Pela
primeira vez na história, passamos a ver pessoas do alto escalão
político e econômico investigadas e detidas (o próprio Mensalão parece
um bom exemplo). Também rapidamente foi elaborada súmula vinculante
para regulamentar o uso de algemas, o que, coincidentemente, jamais
havia motivado tamanha preocupação de nossa cúpula judiciária. Bom
sinal. Condenações, porém, ainda são parcas.

De outro tanto, já de há muito o STF vem dizendo que o poder de
investigar do Ministério Público é legítimo, portanto, constitucional.
E, vejam a "surpresa": em nenhum dos tantos julgamentos que tratavam
do poder investigatório do MP, havia acusados pertencentes ao andar de
baixo... Por que será?

E surge a PEC 37: o Brasil contra o resto do mundo.
Mas, a nave vai. Agora surge a proposta de Emenda Constitucional
37/2011, visando a vedar a apuração pelo Ministério Público das
infrações penais. Numa navegação (ups, quero dizer, tramitação)
recorde, está prestes a ser apreciada pela Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara. Em um momento de virada paradigmática, de início do
fim da impunidade de pessoas próximas ao poder, nada mais inoportuno
que a PEC 37/2011, que aqui denomino de a PEC da Insensatez.

Sigo. É evidente que o poder investigatório do Ministério Público deve
ser controlado (no sentido da regulação). Até as pedras (que não
estudaram) sabem disso. Assim como é evidente que a atividade policial
deve ser controlada. Aliás, a CF diz que o MP controlará a atividade
policial... Não vi nenhuma PEC preocupada com isso. É também evidente
que a atividade judiciária deve ser controlada. Em qualquer tombadilho
se diz isso. Afinal, os juízes decidem praticamente como querem. O STJ
um dia decide de uma maneira; dias depois, decide de outro modo; dias
depois, volta a decidir como no início. Basta ver o modo como o STJ
interpreta o prazo para escutas telefônicas...

Ou seja, é necessário que se coloque freios nas diversas atividades
investigatórias-decisórias. Elementar: tudo o que é invasivo deve ser
controlado, para não virar autoritarismo. No específico da PEC da
Insensatez, seu mentor pretende colocar a atividade investigatória
como exclusiva (ou privativa) para a polícia. Esquece sua Excelência
que nenhum país — democrático — do mundo faz isso. Mas terrae brasilis
tem que dar esse passo em direção ao fundo do poço. Atenção,
Deputados: o Ministério Público é condutor da investigação criminal na
Alemanha, desde 1975, Portugal, desde 1988, na Itália, desde 1989. Nem
vou falar dos Estados Unidos da América. E tampouco da Espanha, em que
as discussões se encaminham para além do poder investigatório.
Pergunto: isso é pouco?

Trata-se de uma PEC pequeno-corporativa. Estou sendo duro na
apreciação pela simples razão de que todos os argumentos técnicos —
mas todos, mesmo — já foram utilizados em várias frentes. Adianta
trazer argumentos de direito comparado? Adianta citar a Suprema Corte?
Parece que não! Adianta dizer que na Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado, Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, cujo
objetivo consiste em promover a cooperação para prevenir e combater
mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional, consta, no
artigo 19, que os órgão mistos de investigação devem ser mistos,
portanto, não exclusivamente policiais? Adianta dizer que o modelo
investigatório a cargo do Ministério Público é também adotado pelo
Tribunal Penal Internacional, conforme artigo 15º do Estatuto de Roma,
de 1998, ratificado internamente pelo Decreto 2/2002, não se podendo
criar, no Brasil, modelo dissonante do praticado na Corte
Internacional? Não. Parece que tudo isso cai no vazio.

Os argumentos não são meus. São do STF. Do STJ. Do Direito
Internacional. Dos Tratados que o Brasil firmou. Mas a PEC está
avançando Congresso adentro. Navegando... Ora, quando a questão foge
dos mínimos padrões de racionalidade, a questão assume contornos
ideológicos. Políticos. Qual é a doutrina processual-penal ou
constitucional abalizada que sustenta a PEC 37? Vejamos alguns
detalhes que mostram a "fundamentação" da aludida PEC.

A "fundamentação" da Emenda, o Inquérito revitalizado e os pés de
Curupira da PEC 37.
Meu caros leitores. Li as razões da PEC 37/2011 (Meninos, eu vi!!!).
Uma lástima técnica. A começar que transcreve trechos de um livro
desconhecido, fruto de publicação individual do seu autor e que sequer
é vendido em livrarias. Trata-se de um "livro secreto"! Claro que isso
é um mero detalhe. Não muda nada. A proposta afirma que a investigação
criminal visa "a completa (sic) elucidação dos fatos, com a colheita
de todos os elementos e indícios necessários à realização da justiça".
Alega que em razão de "muitas provas (sic) serem colhidas nessa fase,
compete a profissionais habilitados e investidos para o feito (sic)".

Ora, ora (e ora). Falar em "provas", assim, desse modo, parece-me
temerário. Ademais, a alegação de necessidade de profissionais
habilitados para colher os indícios (provas?) não é pertinente para
afastar de maneira absoluta o Ministério Público de qualquer
investigação, mesmo em situações em que já ocorre de maneira
supletiva. Alegou também que a falta de regras claras definindo a
atuação dos órgãos de segurança pública tem causado problemas ao
processo jurídico no Brasil. É? Que problemas são esses? E o que
representa "vários processos" para justificar uma Emenda
Constitucional? Constituição é coisa séria. Ou, pelo menos em um
Estado Democrático de Direito, deve ser.

A legitimidade social se justifica quando nasce, no seio da sociedade,
o reclamo, o desejo de mudar o Estatuto Fundamental. Embora nossa
história seja repleta de casuímos nada republicanos (como a Lei 8.985,
de 7 de fevereiro de 1995, que anistiou políticos que cometeram crimes
eleitorais), precisamos dar um basta. Assim, modificar a Constituição
implica, acima de tudo, o uso racional do poder de legislar. Necessita
haver uma base fática e social que justifique a proposta. Além de uma
prognose que se revele positiva quanto ao seu impacto no meio jurídico
e, consequentemente, social. Senão, vira puro exercício de arbítrio
ou, mais grave, desvio de finalidade.

O Brasil, ao contrário do que enuncia a proposta, possui um modelo
bastante autoritário e dependente do Executivo, na investigação
criminal, sintomático de nosso sistema estamental. Significa dizer o
quê? Ao contrário da ideia generalizada de destaque que têm as
autoridades judiciárias e do Ministério Público na prática criminal,
reside na polícia um poder muito maior, pois ela é quem diz, no
dia-a-dia, na formalização ou não do flagrante, o que será ou não
objeto de apreciação pelo promotor e pelo magistrado. Isso é óbvio.
Isso pode ser lido até mesmo em qualquer Manual de direito processual
penal simplificado... Há uma filtragem ainda durante a fase policial.
Uma seletividade arbitrária. Isso prejudica a Democracia, uma vez que
as autoridades policiais não são funcionalmente independentes, isto é,
são removíveis e exoneráveis de suas funções por atos ex-officio do
chefe do respectivo Executivo. Sem esse pressuposto, não se permite
uma investigação profunda e sem pontos-cegos.

Esse modelo retrógrado, burocrático e falho do inquérito policial não
possui similares nos sistemas processuais penais modernos. A PEC
deveria enfrentar o problema do Inquérito e não reforçá-lo. A polícia
deveria lutar para acabar com o IP. Mas, suspeito, o IP ainda subsiste
porque serve à razão instrumental, como meio de controle do exercício
do poder de punir ou não. E não esqueçamos: essa seletividade é
inexoravelmente arbitrária. Por isso tudo, é possível dizer que a PEC
tem pés de Curupira. Se aprovada, deixaria a marca retrógrado no chão
de nosso ordenamento. Seria um ode à impunidade. E isso não podemos
permitir.

Sempre defendi a regulamentação da atividade investigatória. Sou
insuspeito em relação à defesa das prerrogativas dos acusados. Quando
o STF julgou alguns dos processos em que estava em jogo essa
prerrogativa do MP, cheguei a sustentar que o STF fizesse um "Apelo ao
Legislador" (Appellentscheidung), isto é, in casu, dando um prazo para
o parlamento regulamentar a matéria. Seria a saída técnica para o
problema. Mas a regulamentação, obviamente — e até os pedregulhos
sabem disso — deveria respeitar os vetores mínimos já reconhecidos
pela Suprema Corte e constantes na Constituição. Por isso, penso que,
mesmo que a PEC da Insensatez seja aprovada, esta não resistirá a um
exame aprofundado de sua constitucionalidade. Sim, ela é
inconstitucional.

O Ministério Público afastado da investigação?
E não adianta dizer que o Ministério Público terá o poder subsidiário
de investigação (ou complementação de diligências...). A PEC é muito
clara quando retira o MP da cena investigatória. O que quero dizer é
que não devemos brincar de fazer leis ou emendas constitucionais. A
democracia representativa é algo muito sério para ficar refém de "um
fazer legislativo de conveniência" (para usar uma expressão de
Dworkin). Se queremos, de fato, enfrentar o problema da impunidade,
etc., vamos tratar isso sem corporativismos e sem retaliações. É
evidente que a Constituição estabelece que a polícia deve investigar;
mas ela não pode ter o monopólio da investigação, como quer a PEC.
Quem, por exemplo, investigará a Polícia?

Mais: o Ministério Público tem a prerrogativa de instaurar inquéritos
civis. Por óbvio que, no curso das investigações, as áreas de atuação
se confundem. Pensemos no caso da investigação das hipóteses de
corrupção, examinadas, em princípio, como casos de improbidade
administrativa. O promotor/procurador da República poderia investigar
a improbidade, mas não o crime (sendo que o fato, no mais das vezes, é
rigorosamente o mesmo)? Teria de requisitar um inquérito policial para
"esquentar" a sua investigação? Ou, nessas hipóteses em que se
confundem a improbidade e o crime deveria sustar sua investigação e
aguardar pela autoridade policial, sob pena de invalidade? Uau! Ou
ainda, na medida em que o IP é peça dispensável — e parece que nisso a
PEC não pode mexer — uma vez que não se pode impedir o Ministério
Público de fazer a denúncia diretamente (independentemente do IP)
quando já contar com elementos suficientes para justificar a ação
penal, qual será o papel da PEC? Vai ter outra PEC na sequência?

Precisamos falar sobre a PEC 37.
Parafraseando o polêmico livro Precisamos falar sobre o Kevin, em que
o menino psicopata promove uma matança no colégio onde estuda, digo
que "precisamos falar sobre essa PEC". No livro, a mãe se deu conta
tardiamente de que "precisava falar sobre o Kevin". Aqui, ainda dá
tempo. Necessitamos falar sobre isso. Um monte de gente precisa. Do
ministro da Justiça ao gerente de supermercado. A discussão interessa
a todos. Também proponho que nos reunamos para discutir — pra valer —
a regulamentação do controle externo da atividade policial, que parece
ter prevalência nesse tipo de discussão; reunamo-nos para discutir a
forma pela qual o MP pode investigar, com a obediência aos ditames
processuais-constitucionais; reunamo-nos para discutir melhores formas
de fazer funcionar o Poder Judiciário, buscando efetividades
qualitativas; reunamo-nos para alterar a legislação que trata da
criminalidade do colarinho branco... Reunamo-nos para fazer alterações
no CPP de forma a que o sistema processual-criminal não reproduza as
velhas fórmulas de perseguição às camadas pobres da população. Vamos
discutir, finalmente, os modos de enfrentamento dos crimes cometidos
pelo andar de cima. Por que é tão difícil pegar os grandes corruptos?
Seria porque a polícia não possui o monopólio da investigação? Com a
aprovação da PEC 37, isso mudará?

Tudo isso é urgente. O que não é crível é que o parlamento queira,
antes de discutir todos esses grandes temas, apontar suas baterias
para enfraquecer justamente o titular da ação penal. Se o nível de
impunidade é muito grande, não seria melhor fortalecer o titular da
ação penal, ao invés de enfraquecê-lo, fragilizá-lo? Os números de
combate à criminalidade não são nada bons. A polícia investiga menos
de 3% dos homicídios... E a culpa disso seria o poder investigatório a
cargo do Ministério Público? Mas o Ministério Público nem investiga
homicídios... Falemos sério: mal ou bem, de quem esteve à frent

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