"Eles chegaram perto", teria dito FHC sobre o Dossiê Caymann

Por Leandro Fortes
(no livro Jornalismo Investigativo, mas citando Caymann: o dossiê do medo)

Por volta das 16 horas do dia 22 de março de 2001, o jornalista Gustavo Krieger, editor da revista Época em Brasília, foi ao Congresso Nacional conversar com o também jornalista Fernando César Mesquita. Era uma visita obrigatória a todos os repórteres que cobriam política em Brasília. Mesquita era assessor do então poderoso presidente do Senado Federal, Antônio Carlos Magalhães, do PIL da Bahia, e, por isso mesmo, uma boa fonte de notícia. Naqueles dias, o gabinete de ACM fervilhava por conta da briga do velho coronel baiano com o senador Jader Barbalho, do PMDB do Pará. De lá, vazavam inúmeros documentos referentes a fraudes na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia atribuídas ajader, candidato à sucessão de ACM na presidência do Senado. Mesquita dispunha os vazamentos de forma organizada, pautada por sua longa experiência de convívio com o poder e com a imprensa. Ex-diretor da sucursal de Brasília de O Estado de S.Paulo na década de 1980, foi assessor do ex-presidente José Sarney, maranhense como ele, que o nomeou primeiro presidente do Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e, em seguida, governador do território de Fernando de Noronha, antes da incorporação do arquipélago ao estado de Pernambuco. Gustavo Krieger fora ao gabinete de Fernando César Mesquita disposto a conseguir uma boa história exclusiva. Encontrou o assessor animado.

— Estou investigando uma bomba capaz de derrubar o governo — disse Mesquita. — E, pior, a sua concorrente está atrás.



Krieger reagiu com impaciência e pressionou o assessor até que ele desse ao menos uma pista sobre o assunto. Mesquita passou-lhe, então, o texto de um e-mail, antes tomando o cuidado de rasgar o remetente no alto da página e jogá-lo na cesta de lixo próxima à porta. O papel trazia uma transcrição de fitas atribuídas ao grampo do BNDES, a maior parte reproduções fiéis de trechos anteriormente divulgados pela imprensa. A novidade estava na última parte do e-mail, supostamente uma conversa entre o então presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros. Mesquita não deixou Krieger tirar cópia do documento, mas ele memorizou as partes mais importantes e, na noite daquele mesmo dia, enviou um relatório ao jornalista Eumano Silva, chefe da sucursal da Época em Brasília. O editor despediu-se, fez menção de que iria embora imediatamente mas esperou o assessor se distrair para, então, catar no lixo o endereço rasgado por Mesquita. Era Iight05@globo.com, um endereço eletrônico aberto em nome de "Clark Kent" e montado só para mandar informações para o senador Antônio Carlos. O resumo do que estava ali, segundo Gustavo Krieger, era o seguinte:

— Fernando Henrique abre a conversa comentando a divulgação do Dossiê Cayman: "É muito grave", diz. "Já falei por aqui que os papéis são falsos."

— Mendonça diz que é coisa de Paulo Maluf para prejudicar Covas e acrescenta: "Mas eles não sabem de nada."

— "Eles chegaram perto", diz o presidente, e completa: "Eu não queria botar o Chelotti (Vicente Chelotti, então diretor-geral da Polícia Federal) nisto, estou preocupado com a mulher."

— "A do Motta?", pergunta Mendonça de Barros.

— "E", responde Fernando Henrique. "Ruth a procurou", referindo-se, se a gravação for mesmo verdadeira, a um suposto encontro da primeira-dama Ruth Cardoso com a viúva de Sérgio Motta (ex-ministro das Comunicações de FHC, já falecido), Wilma.

Logo depois, ainda segundo relato de Gustavo Krieger sobre o que estava no e-mail mostrado por Fernando César Mesquita, o ministro Mendonça de Barros assegura que as coisas estavam sendo resolvidas por uma pessoa de nome "Roberto". A Krieger, Mesquita disse que se tratava de Roberto Amaral, ex-diretor da construtora Andrade Gutierrez. Trata-se de uma figura conhecida nos meios políticos brasileiros. Celebrizou-se por emprestar jatinhos a candidatos poderosos e contribuir com polpudas doações para campanhas de interesse da empreiteira. Oficialmente, estaria morando na Suíça quando da menção de seu nome pelo ex-ministro. Em seguida, Mendonça de Barros, também conhecido pelo apelido de "Mendonção", comenta que alguém poderia ter vazado a informação sobre a conta para a imprensa. "Mas não foi ninguém de lá (provavelmente se referindo ao paraíso fiscal de origem), eles são muito discretos." E acrescentou: "Lá nós somos só um amontoado de letras e números."

Fernando Henrique reforça sua preocupação e repete: "Eu não queria botar o Chelotti nisto."

As fitas a que o e-mail enviado ao gabinete de Antônio Carlos Magalhães se referiam estariam supostamente sendo vendidas por pessoas da comunidade de informações, arapongas do antigo SNI, que, uma vez absorvidos pela Abin, estariam tirando a barriga da miséria depois dos anos de ostracismo impostos pelo regime democrático. O lote de fitas também envolveria o ex-presidente da Petrobras, Joel Rennó, e o presidente da Marítima, Petróleo e Engenharia, German Efromovich, empresa responsável pela encomenda da plataforma p-36, que acabara de naufragar, em 20 de março de 2001, na Bacia de Campos, dando um prejuízo de R$ 1 bilhão ao Tesouro Nacional. Gustavo Krieger apurara que, no dia seguinte, uma sexta- feira, ACM mandara um interlocutor procurar um contato dos arapongas na Bahia. Avisado pelo chefe da sucursal, o diretor de redação da Época em São Paulo, o jornalista Augusto Nunes, ligou pessoalmente para a assessora Ana Tavares, também jornalista e auxiliar de absoluta confiança de Fernando Henrique. Por intermédio dela, Nunes conseguiu falar com o presidente, que, por sua vez, negou o conteúdo do e-mail passado para ACM. Em sua edição do dia 26 de março de 2001, a revista Época publicou uma matéria intitulada "O guichê dos falsários". Tratou do e-mail mostrado a Krieger por Fernando César Mesquita, mas seu conteúdo, por não ser confirmado, não foi revelado aos leitores. Publicaram-se apenas as respostas dos que foram citados na suposta gravação:

— Nunca houve essa conversa, e nem existe fita nenhuma — sentenciou o presidente.

Reação semelhante teve o ex-ministro Mendonça de Barros ao ser procurado pela reportagem da Época. Demitido do cargo justamente por causa das fitas do BNDES, Mendonção pôs-se a rir antes de responder:

— Naquele tempo, eu nem tinha ouvido falar em Dossiê Cayman — garantiu.

Krieger ainda conseguiria descobrir o nome do intermediário dos arapongas em Salvador, razão pela qual eu fui enviado à capital baiana já na terça-feira, dia 27 de março. O contato chamava-se Yolanda Santana Lopes, ex- chefe do setor de pessoal das Voluntárias Sociais da Bahia. Entre 1990 e 1994, foi diretamente subordinada a Teresa Mata Pires, filha do então governador do estado, Antônio Carlos Magalhães. Pobre, falastrona e de aparência macilenta, Yolanda só entrou nessa história porque tinha um parentesco afetivo com o principal negociador da gangue das fitas, o detetive de segunda categoria Luiz Alberto Moura, da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Para mim, ela dissera que o "primo" chamava-se Jorge Moura. Os dois haviam passado parte da infância juntos, na década de 1970, no interior do Rio, e Moura, quando precisou de alguém que pudesse chegar a ACM — potencial comprador do material —, lembrou-se da "prima" distante.

Encontrei Yolanda Lopes vivendo, gorda e desempregada, num apartamento de dois cômodos no Barbalho, bairro de classe média baixa de Salvador. Ela esperava ganhar R$ 300 mil num negócio que tinha a pretensão de render R$ 32 milhões. Fingi ser emissário de um grupo de políticos, o que de pronto foi interpretado por Yolanda como um sinal de que eu, na verdade, estava falando em nome de ACM. Depois de dois dias, e ao cabo de uma tensa negociação por telefone com Alberto Moura, consegui convencer Yolanda a embarcar comigo num vôo para o Rio de Janeiro, onde, no saguão de desembarque do Galeão, nos esperaria o "primo" das fitas.

A pretexto de fazer uma merenda, levei Yolanda para comer coxinhas numa lanchonete do aeroporto de Salvador e, antes de embarcar, pedi a ela que me contasse tudo o que tinha me dito antes no apartamento do Barbalho. Com um gravador escondido na bolsa onde levava um notebook, registrei o depoimento, inclusive as conversas que ela contou ter tido com dois emissários de Antônio Carlos Magalhães pouco antes de minha chegada. Um deles era o coronel Cristóvão Rios, chefe da Casa Militar do governador baiano César Borges, também do PIL. O outro era um homem de meia-idade apresentado a Yolanda apenas pelo primeiro nome: Emílio. A dupla tinha sido mandada ao Barbalho para verificar a veracidade das fitas e, é claro, a viabilidade do negócio. Ao perceberem do que se tratava — e do valor cobrado —, avisaram ACM dos riscos e nunca mais deram as caras por lá. Foi por isso que, quando me viu, Yolanda imaginou que eu era uma terceira pessoa negociando em nome do senador. Antes de embarcar para o Rio, telefonei para Eumano Silva e pedi que Gustavo Krieger também estivesse no Galeão. Minha idéia era apresentá-lo a Yolanda e Alberto Moura como especialista em eletrônica, alguém capaz de identificar a qualidade das fitas, ou qualquer coisa desse tipo. Eu só não queria arriscar minha pele sozinho. Contava com Krieger para me ajudar a chegar a um desfecho tranqüilo porque, ao aceitar negociar com Moura, aquela investigação tornara-se inevitavelmente perigosa. Foi uma decisão acertada. Quando cheguei na sala interna de desembarque, liguei o celular e verifiquei que tinha um recado dele na caixa de mensagens. Amigo de longa data, Krieger tentou parecer tranqüilo ao passar um recado angustiado:

— Mane, o cara que está lhe esperando no aeroporto já sabe que você é da Época. O negócio agora é fingir que a revista está interessada em comprar as fitas.

Enquanto eu voava em direção ao Rio, com Yolanda absolutamente deslumbrada em sua primeira viagem de avião, Alberto Moura entrou em contato com o gabinete de Antônio Carlos Magalhães em Brasília. Contou a Fernando César Mesquita o que estava acontecendo na Bahia, inclusive que Yolanda tinha embarcado com um misterioso emissário que se apresentara apenas como "Léo", mas que na verdade se chamava Leandro. Ele sabia meu nome por conta de uma falha infantil cometida por mim no apartamento do Barbalho. No segundo dia de conversa, deixei meu celular em cima da mesa da sala enquanto negociava com Yolanda o encontro com Moura no Rio. Por causa disso, ela pôde ver meu nome estampado na tela de cristal líquido do aparelho tempo o bastante para decorá-lo e, menos boba do que eu imaginava, passou de pronto essa informação para o "primo" carioca. Mesquita, mesmo sabendo que, naquela circunstância, colocaria minha vida em perigo, passou minha ficha completa para Moura. Krieger acabou sabendo do fato pelo próprio assessor e, vestido sinistramente de preto no desembarque do Galeão, esperava por mim com um plano alternativo na cabeça. Antes de ir ao meu encontro, o editor passou na redação da sucursal da revista em Botafogo para se juntar a um fotógrafo e uma repórter que iriam se passar por turistas no saguão do aeroporto, forma encontrada para flagrar Moura e Yolanda sem dar bandeira. O equipamento foi instalado dentro de uma bolsa e registrou umas poucas cenas fora de foco, mas suficientes para ilustrar bem a reportagem — aliás, a capa da edição do dia 2 de abril de 2001.

Fiquei nervoso com o fato de ter sido desmascarado em pleno vôo, embora Yolanda ainda não soubesse que eu era jornalista. Sequei o suor da testa e fui com ela até o ponto combinado. Dei de cara com Krieger, apresentado friamente a Yolanda, e juntos fomos ao encontro de Jorge, ou melhor, Alberto Moura. Era uma figurinha miúda, visivelmente nervosa e amedrontada com a situação. Usava óculos escuros, camisa social branca amarrotada e aberta no peito, a toda hora demonstrando reações paranóicas típicas de quem acha que está sendo seguido ou gravado. Com a mesma bolsa usada no caso de Yolanda, consegui, de fato, gravar parte dessa conversa inicial, mas ele já sabia que eu era repórter. Quando percebeu que meu carrinho de bagagem estava muito próximo, disse que não iria mais falar nada até eu removê-lo dali. Aos poucos, fomos tranqüilizando Moura, e em meia hora ele já tinha como certa a disposição da revista Yipoca de comprar as tais fitas com os supostos grampos do bndks. Yolanda nem saiu do Galeão, mandada de volta pelo "primo" no primeiro vôo para Salvador. Com Moura, foi marcado um novo encontro, mais para o final da tarde, num hotel de Copacabana. Krieger havia trazido de Brasília um pequeno gravador digital e no quarto do hotel onde nos hospedamos, ajudei-o a amarrar cuidadosamente, com fitas de esparadrapo, o equipamento em seu pulso esquerdo. Assim, com um gravador escondido pela manga comprida de uma camisa absolutamente inadequada para a estação — pleno verão carioca! —, ele entrou comigo num táxi rumo ao calçadão em frente ao Sofitel, luxuoso hotel do Posto 6 de Copacabana, onde Moura nos aguardava.

Sem óculos, o "primo" de Yolanda assemelhava-se muito ao ator americano Tom Hanks, só que reduzido a 1,60m. Fomos encaminhados à piscina do hotel, no mezanino do prédio, onde uma outra figura, que se identificou como Antônio, pinta de policial, nos esperava cheio de mistérios e ameaças. Mandou que tirássemos as baterias de nossos celulares porque, grande entendido que era em espionagem, sabia da possibilidade de ser gravado por microequipamentos escondidos. O que ele não sabia era que, a partir daquele momento, estava sendo grampeado pelo gravadorzinho digital amarrado ao pulso de Krieger. Moura fez uma ligação num celular clonado, segundo ele mesmo fez questão de frisar, e passou o aparelho ao jornalista. Do outro lado, um dos arapongas envolvidos no grampo iria rodar algumas passagens à guisa de amostra. Eram trechos nos quais, supostamente, ouviam- se as vozes do ex-presidente da Petrobras, Joel Rennó, do presidente da Marítima, German Efromovich, e do assessor do Palácio do Planalto e ex- governador do Rio Wellington Moreira Franco. Não tratavam de nada específico, e Alberto Moura explicou por quê:

— E uma amostra. As bombas, só para quem pagar o preço. Dizem que é caro, mas qual é o preço do impeachment?

A reportagem, que também teve a colaboração de Pollyana Ferrari, coordenadora da edição on-line da Época, da sucursal do Rio, serviu como base para uma investigação da Polícia Federal que resultou, no dia 27 de julho de 2001, na prisão de Luiz Alberto Moura, no Rio de Janeiro. Posto em liberdade, prometeu só falar em juízo. Até lá, todas as informações referentes ao e-mail apresentado por Fernando César Mesquita a Gustavo Krieger são suposições. Verossímeis, mas suposições.

Comentários