O brasileiro não é assim, por Sócrates

Por Cynara Menezes
No blog Socialista Morena



Duas notícias boas neste post: uma é que a editora Confiança, que publica CartaCapital, agora também edita livros. A outra é que o primeiro volume do que, espero, seja uma série, é dedicado a Sócrates: reúne os melhores textos que o grande atleta e pensador escreveu para a revista durante dez anos, de 2001 até sua morte, em dezembro de 2011. Talvez nunca tenha havido um jogador de futebol tão politizado quanto Sócrates, um dos líderes da democracia corintiana, que se juntou à campanha por eleições diretas desde a primeira hora. Um legítimo esquerdista de coração, brasileiro até no nome: Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.

Jamais vou esquecer o futebol elegante de Sócrates maravilhando o mundo na fatídica, para minha geração, Copa de 1982. Nunca mais o futebol seria o mesmo para mim depois daquela derrota. Até porque nunca mais houve uma seleção que jogasse tão lindo assim, houve? Para matar a saudade do Magrão, que não viu seu Corinthians ser bicampeão do mundo, um dos textos do livro.

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O brasileiro não é assim
(junho/2011)


Ele não é assim! O brasileiro não é egoísta.

Quem vai à Bahia sabe que, no mínimo, encontrará uma porta sempre aberta para recebê-lo, ainda que não seja tão íntimo assim. Tenho uns amigos que pelo menos uma vez por mês fazem uma feijoada, digamos, comunitária. Um imenso caldeirão queima a noite toda para felicidade de vizinhos, amigos e agregados, como se fosse cenário de uma ária gastronômica de um Puccini ou de um Verdi. Nos primeiros acordes da manhã que se anuncia já se vê um arremedo do movimento que acompanharemos durante todo o fim de semana. Pela pequena mesa da sala de jantar vão passando, quase em procissão, dezenas de pessoas que se aconchegam nas conversas que jamais acabam, nos pratos bem servidos, nas risadas provocadas pelos anfitriões, ouvindo sempre um som para lá de característico da casa, como: “Nesta cidade todo mundo é d’Oxum; homem, menino, menina, mulher; toda gente irradia magia, presente n’água doce, presente n’água salgada; e toda cidade brilha, seja tenente, filha de pescador ou importante desembargador; a força que mora n’água não faz distinção de cor”. Um épico de Gerônimo, o tenor da raça.

O brasileiro, apesar da realidade social defasada, também não é racista ou intolerante. Exatamente porque temos uma estrutura étnica das mais variadas. Vemos características humanas distintas dependentes do meio ambiente, da economia e, particularmente, da imigração, que proporcionam u uma realidade absolutamente única ao introduzir novos contingentes humanos aos já existentes, absorvendo-os e abrasileirando-os além de estrangeirar grupos nacionais nas áreas onde estes mais se concentraram.

Caboclos, sertanejos, crioulos, caipiras e gaúchos conseguem, apesar das diferenças culturais, conviver de forma absolutamente confortável, ainda que tenhamos tido alguns conflitos aqui e acolá. E a urbanização, que trouxe para as fronteiras das cidades (em particular as mais industrializadas) uma multidão de origem rural, tornou-a ainda mais uniforme mesmo mantenedora de suas origens culturais.

Ele não é conservador, mesmo que boa parte de sua população aja como tal. Ele é eterno modificador do meio em que vive; é agressivamente saudável no trato cultural. É criativo, alegre, expansivo, insinuante e agradável ao extremo. É um povo voltado para a vida e para a felicidade, ainda que dela não tenha chegado nem perto. Mas essa insistente busca é o que permite que ele seja dono de seus passos; consequentemente é liberto e independente. O brasileiro também não é corrupto como se propala aos quatro ventos. Qual é a riqueza maior do brasileiro e da qual faz de tudo para não se afastar? A honra! Honra que passa necessariamente pelo extremo cuidado em responder por seus acordos, pagar suas dívidas, agradecer os auxílios e nunca, nunca mesmo, aceitar algo que vá contra os seus princípios.

Honra que mesmo na miséria o faz ser altaneiro e orgulhoso de quem é. Honra que passa para os filhos, que ajuda quem precisa, que educa e socializa. Certa vez, o pai de um amigo ficou tão irado quando uma determinada montadora de automóveis tentou ganhar a sua “confiança” em algum assunto, que nunca mais imaginou utilizar qualquer produto daquele fornecedor como se tudo aquilo que ocorrera fosse sua maior decepção em vida. E assim o fez por décadas. Na verdade, quem age, pensa e possui essas deficiências não são os brasileiros. São aves de rapina, animais predadores de uma cultura especial carregados para cá por ventos insanos e desavisados. Essas espécies fatalmente caminham para a extinção. Só não desapareceram ainda por falta de alguma engrenagem ainda não detectada pelos que com eles dividem a mesma terra. São usurpadores das qualidades desse povo. São destruidores da boa vizinhança, da diplomacia e do respeito. São oportunistas, verdugos, sem escrúpulos, cínicos e patologicamente sintomáticos. Escondem-se debaixo das cores e do altruísmo nacional. Utilizam métodos próprios absolutamente condenáveis de aproveitar o poder.

Como o do futebol neste país. É uma vergonha que tenhamos a nossa nação, o nosso país, sendo discutido mundo afora por causa de atitudes desconexas, disformes, desorientadas e infames de um único e lastimável ser. O brasileiro não se sente representado por ele. O brasileiro é muito melhor que “isso”. O brasileiro deveria se sentir agredido, aviltado, incomodado e enojado com tudo o que está acontecendo. O Brasil nunca foi mesquinho e doente. É bem maior e mais saudável!
Sócrates, brasileiro: Prefácio de Juca Kfoury. Editora Confiança, 216 págs., R$19,90 (à vendas nas bancas de revista)

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