O povo é débil mental?

Por Cynara Menezes
No blog Socialista Morena


Neste 2012 que já está no fim completaram-se 45 anos que foi apresentado ao mundo Terra em Transe, a obra-prima de Glauber Rocha que revolucionou o cinema com sua inovação estética e de linguagem. Quase meio século se passou e o Brasil que se desnuda nas imagens em preto e branco permanece atual: políticos populistas ou assumidamente de direita às voltas com um jornalista supostamente “idealista”, mas que na hora agá é capaz de chamar o povo de imbecil.

De todo o filme, foi esta a cena que marcou Nelson Rodrigues em sua faceta mais reacionária: “Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em Transe. Refiro-me ao momento que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar, e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade mansa, translúcida, eterna: o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir volta a babar na gravata”, escreveu o dramaturgo.

Na cena a que Nelson se refere, o jornalista vivido por Jardel Filho tapa a boca de Jerônimo, um líder sindical, e berra: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Já pensaram Jerônimo no poder?” Que visionário era Glauber… O sindicalista chegou, sim, ao poder. E estas frases de Terra em Transe me chacoalham agora, diante dos resultados da última pesquisa Datafolha sobre a confiança da população nas instituições: em três meses, o número de pessoas que confiam muito na imprensa caiu de 31% para 22%. Ao mesmo tempo, os que não confiam nada subiram de 18% para 28%. Mantiveram-se estáveis os que confiam “um pouco” na imprensa: oscilaram de 50% para 51%.
(o jornalista tapa a boca do povo: “imbecil”)

Por que isso se deu? Porque o povo é imbecil, como defendia o jornalista de Terra em Transe? Ou será que os jornalistas, como o do filme de Glauber, é que subestimam o povo? O que terá acontecido para que o povo, tão ingênuo, tão naïf, adquirisse esta desconfiança toda da imprensa? Sendo, ora, “débil mental”, como pôde enxergar no noticiário algo digno de desconfiança? Será a parcialidade jornalística, travestida de imparcialidade, tão visível que até um idiota –o povo– consegue perceber? Ou será que o povo, este imbecil, não está reconhecendo a si mesmo na imprensa? Como confiar em um “espelho da sociedade” que parece refletir seu oposto?

A imprensa brasileira esteve junto e refletiu os anseios do povo na campanha das Diretas, em 1984 –à exceção da rede Globo. Em 1991, novamente ao lado da população, jornais e tevês apoiaram o movimento que culminou no impeachment de Collor, em 1992. Mas, desde que Lula se tornou presidente, em 2002, começou um processo de distanciamento, de divórcio da chamada “grande imprensa” da população em geral (não é à toa que, neste período, tenham avançado os jornais “populares”: no ano passado, os jornais com preço de capa inferior a 1 real cresceram 10,3%).

Quanto mais o brasileiro se identificava com a presença de “um deles” na presidência, mais os grandes jornais se desidentificavam do povo ao atacar Lula sem trégua e, muitas vezes, sem razão. Faz dois anos já que Lula deixou a presidência, mas o processo continua. O ex-presidente se tornou uma obsessão para a imprensa, cujo objetivo parece ser destruí-lo. A pesquisa Datafolha também mostra que as críticas não atingem o eleitorado de Lula, que seria eleito no primeiro turno se fosse candidato à presidência novamente, com 56% dos votos. Imagino qual deve ter sido a reação à pesquisa dentro das redações: “Mesmo após o ‘mensalão’ eles ainda votariam em Lula? Ô povinho débil mental”.

Longe das paixões políticas, falta a jornais e jornalistas algumas reflexões. Talvez, ao tentar atingir Lula desmedidamente, forçando a mão nas denúncias, os jornais estejam atingindo o povo que ele representa e talvez o povo não esteja gostando disso. Talvez o povo esteja irritado também com a crítica contínua dos jornais a seu próprio comportamento, inclusive nas urnas. O olhar da mídia para com as escolhas do povo é no mínimo condescendente e, na maioria das vezes, de franca desaprovação –até porque a escolha, aberta ou velada, dos donos da imprensa recai no candidato oposto. “O povo não sabe votar” sempre foi o discurso adotado pela grande mídia e pela elite que ela representa. “O povo vota nessa gente porque eles dão esmola” é a nova versão da mesma frase. Ignora a realidade mais chã, de que talvez o povo vote “nessa gente” porque: 1. se identifica; 2. sua vida melhorou; 3. gosta.

A outra hipótese para esta falta de confiança do povo na imprensa talvez esteja na agenda negativa que ela adotou nos últimos dez anos. É a exata inversão da máxima do ministro Rubens Ricúpero durante o governo Itamar Franco: “O que é ruim a gente fatura, o que é bom a gente esconde”. Vasculhem as capas dos jornais na última década à cata de boas notícias. Não tem nada lá, e houve boas notícias de sobra. Se um extraterrestre descesse aqui hoje e julgasse o País apenas pelo que lê e assiste na imprensa, pensaria que estamos à beira do colapso. E vai ver o povo, mesmo sendo débil mental, não gosta de ficar lendo má notícia o tempo todo. Já trabalha duro o dia inteiro, não quer saber de tanta chateação.

Há ainda a possibilidade de que a internet tenha se consolidado como a “má influência” que os donos dos jornais, no fundo, tanto temiam. Não se pode descartar que os “blogs sujos”, que vêm martelando ao longo destes anos as manipulações e o mau jornalismo praticado por setores da mídia, tenham logrado plantar uma sementinha de desconfiança na cabeça do povo. O brasileiro, sem acesso aos jornais impressos, passou a se informar pela rede e a ter diferentes visões do noticiário, antes dominado pelo poderoso (e tendencioso) telejornal da maior emissora do país e por meia dúzia de veículos impressos. Com o acesso livre à informação, talvez o povo já não seja mais tão débil mental assim. Será que o foi algum dia?

Comentários