Tão pequeno

Este é um texto de ficção.


Tão pequeno, tão desesperado, tão sozinho. Estava lá deitado, no meio da rua, entre carros que se esforçavam para desviar do pacote, quase sem ter tempo de evitar os acidentes. Chorava pedindo a morte. Parecia perto de conseguir o que queria, parecia ser seu fim.

Nove anos, corpo mirrado, tradução indubitável da desnutrição que o acompanha desde antes de deixar a barriga da mãe. Vai à escola de vez em quando. Quando vai, sente dificuldades. Talvez aquilo ali não seja para ele. O bolsa família o ajudou a dedicar um pouco mais de coração e espírito para o estudo. Mas a mãe o quer na rua, não o quer doutor. Essa mulher que as pessoas não conhecem pelo nome prefere seu filho ajudando a criar os outros cinco irmãos. Josias não é o filho mais novo nem o filho mais velho. Sua mãe, Catarina, se viu só desde muito cedo, quando o marido, cobrador de ônibus e ex-traficante foi morto em uma ação mal explicada da PM. O velório no templo da Assembléia de Deus do bairro mobilizou uma multidão. O presbítero Antônio, convertido jovem ao evangelho da igreja, largou o crime e ajudava em projetos sociais que envolviam o esporte nos bairros da vizinhança. A polícia nunca engoliu direito que um traficante largasse o crime e se pusesse a ajudar à sua comunidade. Pelo menos em duas ocasiões, após ser membro da igreja evangélica, Antonio foi preso e espancado pelos policiais. Chorava, mas nem reagia nem falava nada. Guardava o silêncio dos inocentes.
Antonio foi sempre inquebrantável. Talvez perturbados com isso, os PMs desistiram de simples prisões. Num domingo de folga, Antonio saiu no início da manhã para comprar frango em uma rua do comércio ali bem perto. A partir daí, versões desencontradas.
A polícia e as páginas dos jornais relatam que ele foi morto tentando assaltar um PM à paisana, de folga. Para os jornais, um perigoso criminoso da periferia foi morto em uma tentativa de assalto. Uma foto antiga, dos tempos de crime, ilustra quase todas as matérias. Foram três tiros certeiros no espaço de poucos centímetros entre a boca e o peito de Antonio. Nenhuma investigação foi feita, nenhum PM punido.

Antonio, seis filhos, deixou viúva e desesperada Catarina. Sem estudo, Catarina sempre trabalhou como empregada doméstica. Emprego de muita humilhação, costuma chorar enquanto varre o chão e limpa as manchas rosadas da dor e da inquietude que os outros sofrem. Semi-analfabeta, não consegue compreender como estudar pode valer mais retorno que quaisquer outras formas de investimento. Sozinha, abandonou a igreja. Não cria mesmo muito naquelas palavras bonitas ditas pelo pastor a cada domingo. Deu para beber e ser violenta com as suas crianças. Por isso, Josias, como seus irmãos, só vai para a escola escondido ou quando sua mãe amanhece de bom humor.

A bebida terminou atrapalhando o emprego. Passou a responder a patroa. Demitida. Agora, vez em quando e quando em vez, faz uma diária no apartamento de algum solteiro e descola uns trocados. Bom quando o infeliz sai para trabalhar porque, aí, Catarina pode tomar uma dose daquele uísque melhor que o Drullis que ela um dia tomou no bar da esquina.

Nos outros dias, Catarina se esforça por se manter sóbria e, com a ajuda das crianças, fazer amendoim para Josias vender nas ruas de Salvador. Nem consegue ficar sem beber e, quando acontece de beber um pouco da cachaça que sempre fica ao pé da cama, o amendoim sai queimado da panela. E Catarina descarrega a frustação nos seus filhos.

Naquela manhã, como em quase todos os dias, Josias se levantou antes das cinco, o céu escuro, com o cheiro doce de um amendoim feito com cuidado por sua mãe. Por um instante, vindo de um sonho bom, imaginou que podia mais uma vez estar no circo Estoril onde já estivera, comendo amendoim ao lado de mãe e irmãos. Um instante apenas, e logo percebeu que sonhava. Acordou, levantou-se, tomou um copinho de leite, sem pão, sem manteiga, sem nada mais.

Tomou nas costas o pacote com cinqüenta e seis bem contados pacotinhos de amendoim torrado e doce, caramelizado. Cada um será vendido por apenas um real. Circularia nos pontos de ônibus próximos à redação do jornal A tarde. Talvez até algum motorista lhe permitisse subir na condução para vender seu produto. Não tinha muitos planos para o dinheiro que conseguisse, consciente de que sua mãe o desejava – para comprar um pouco de feijão com arroz... e cachaça.

Conseguiu ir de carona, cedinho, em um ônibus. Desceu na rodoviária. As pessoas começavam a chegar para o trabalho. Muitos trabalhadores com fome. Já ali, naquele mar de gente, Josias começa a sua venda diária. Antes de atravessar a passarela em direção ao Shopping Iguatemi, já vendeu mais de dez pacotinhos de amendoim.

Passa circulando ali, entre o jornal e o shopping. Vendendo seus amendoins. Sorrindo simpático para cada pessoa que lhe dirige a atenção. Alguns traseuntes têm medo do menininho. Ele, pequeno como ele é, já aprendeu que a vida é assim mesmo. Preto e pobre provoca medo.

Já chegando ao fim do dia, quando o movimento de carros aumenta e de pessoas diminui, Josias decide ir embora. Dos cinqüenta e seis pacotinhos de amendoim, restam onze por vender. Sabe que sua mãe não ficará muito satisfeita, mas, pelo menos, está levando quarenta e cinco reais de volta para casa. Quer dizer, quarenta e três porque não resistiu a comprar um salgado e matar sua fome já quase na hora de ir embora.

Sem muitas alternativas, Josias sabe que precisa ir andando até a rodoviária para tentar voltar para casa. E vai distraído com as luzes dos carros, com a beleza monstruosa dessa cidade que encanta e espanta. Nem tem tempo de perceber o grupelho de cinco ou seis meninotes que vêm correndo em sua direção. Quando se dá conta, já é tarde. Um safanão ao pé do ouvido e uma rasteira de pernas bem aplicada o jogam desnorteado ao chão. Poucos motoristas que trafegam ali em frente poderiam perceber a cena, de tão rápida.

Agarram Josias, tiram-lhe os onze pacotes restantes de amendoim, e arrancam-lhe das mãos e dos bolsos os quarenta e três reais que preparava para levar para casa. Ele sabe que não adianta correr atrás dos garotos, mas corre. Ele sabe que não adianta chorar, mas chora. Ele sabe, cansado, que não adianta sentar, mas senta.

E sentado, chora se lembrando de cada surra que já levou de sua mãe. Teve uma vez que ele passou quase dois dias, de cama, com febre e o corpo, as pernas e, especialmente, a cabeça bastante doloridos. Um olho roxo o fazia corar de vergonha. A mãe havia bebido com amigos da rua durante todo o domingo. Torrando uns poucos trocados que amealhará durante a semana. Josias, prematuramente maduro, sofria ao ver a mãe beber o dinheiro que conseguia porque sofria ao ver seus irmãos e ele mesmo passando fome. Quando voltou para casa, Catarina foi surpreendida com uma pergunta simples e direta do filho: Mãe, por que você bebe em vez de trazer comida para casa?

Os vizinhos ouviam o choro de Josias mas não se envolveriam. A mãe deve ter o direito de bater no seu filho. Até mesmo a vizinha de trás, ex-companheira de círculo de oração de Catarina em seus dias evangélicos, acreditava que é a vara da disciplina que pode manter uma criança na linha. E naquela vizinhança, o crime, a droga campeiam. Antes Josias apanhar da mãe que da polícia. Ou ser morto pela polícia como foi seu pai.

Foram quase dois dias de cama. De sofrimento. De dor. De febre. E com uma promessa resoando nos ouvidos. Da próxima vez, a mãe o mataria, filho infeliz.

Sentado na calçada, Josias chorava e se lembrava da dor. Que futuro havia para ele? Só havia dor. Fome. Trabalho. Surras. Brigas. Tiros. Mortes. Nenhuma alegria. Nenhum divertimento. Josias não vivia, verdadeiramente. Josias sofria. E sofria demasiadamente para um menino com apenas nove anos. Ele nunca ouvira falar em depressão, mas se tivesse ouvido seria capaz de entender que sua vida foi sempre uma eterna depressão, desde que se deu conta que seu pai não voltaria. Desde que chorou ao ver o caixão descendo à cova mal cavada no cemitério. Agarrou-se à mãe e chorou. Uma mãe que mal reagiu. Em casa, mais tarde, soltou uma impropério e uma maldição contra o marido que a deixou sozinha com seis filhos. E voltou a beber. E beber muito.

Josias nunca viveu. Talvez por isso não fosse difícil para ele entender que o fim do sofrimento era possível. Sofrer não é viver. E, já que nunca viveu, deseja apenas escapar do sofrimento. Não pode voltar para sua casa sem o dinheiro. A mãe nem o ouviria contar do roubo, dos garotos, do susto. A mãe o mataria com tanta porrada. Só há um escape, uma solução.

Ele se levanta e segue chorando na direção da Casa do Comércio. Não pensa direito, mas quer ver mais carros. Agora não o encanta a beleza monstruosa da cidade. Mas sente o medo de um monstro invisível que lhe quer engolir. Nessa hora, não pensa mais. Apenas sofre, sente, vivencia o pavor e o medo. De sofrer. Nem se dá conta que agora se deita para chorar no meio da rua. Tão pequeno, tão desesperado, tão sozinho. Estava lá deitado, no meio da rua, entre carros que se esforçavam para desviar do pacote, quase sem ter tempo de evitar os acidentes. Chorava pedindo a morte. Parecia perto de conseguir o que queria, parecia ser seu fim.

Param dois carros, correm pedestres pela calçada. O fluxo é tão intenso perto das sete da noite que ninguém vê aquele pacote deitado na rua até chegar bem em cima dele. Josias apenas chora. Finalmente, dois homens conseguem tirá-lo do meio da rua. Você está maluco garoto. E ele chora, contando sua história, para a descrença de parte do pequeno grupo de nove pessoas que se aglomera em seu redor. Você já imaginou o que sua mãe ia pensar se você morresse aqui. Ela vai me matar se eu voltar para casa sem o dinheiro. Eu o vi vendendo o dia inteiro, diz um. E se a gente juntasse um dinheiro para te ajudar. Vai para casa rapaz. Minha mãe vai me matar. Minha mãe vai me matar. Prefiro morrer. Ninguém vai dar conta de mim mesmo. Sua mãe vai sentir sua falta.

Enquanto discutem, enquanto conversam, ninguém presta atenção em sua história. Tenta correr, agarram-lhe o braço. Esforça-se e, na força bruta de um menino, escapa sorrindo, gargalhando, da mão que tenta segurar-lhe. Corre até a esquina. E, rindo pela liberdade, joga-se à frente de um ônibus.

Catarina nunca foi reclamar o corpo do filho.

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