Kiss teria desrespeitado normas básicas de segurança

No Brasil 247



Principal falha foi não dispor de uma saída de emergência adicional, mas há uma lista do que não atendia às regras; polícia faz buscas em outros estabelecimentos de Mauro Hoffmann, segundo sócio da casa noturna preso nesta segunda.

Não dispor de uma saída de emergência adicional era o primeiro item de várias normas básicas de segurança contra incêndios desrespeitadas pela boate Kiss.

Para assegurar o curso das investigações sobre o incidente que resultou na morte de mais de 230 pessoas, a Polícia Civil cumpriu, ontem, mandados de prisão temporária dos dois proprietários da casa noturna e de dois músicos da banda Gurizada Fandangueira.

Além das causas da tragédia, a polícia terá de apurar porque autoridades diminuem a importância de problemas estruturais considerados graves por especialistas.

A Kiss tinha apenas uma porta, que funcionava como entrada e saída. O Corpo de Bombeiros considera desnecessária a existência de uma segunda saída, mas a porta de emergência é considerada obrigatória pela Norma 9.077 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que baliza as legislações contra incêndio de Santa Maria e do Estado. José Carlos Tomina lidera o Comitê Brasileiro de Segurança contra Incêndio — grupo que, na ABNT, elaborou as 64 normas de prevenção e combate a incêndios vigentes no país.

— A norma em questão não prevê nenhuma possibilidade daquela casa noturna estar funcionando com apenas uma saída, não importa o tamanho da porta — afirmou.

É necessário, também, que a saída adicional fique do lado oposto ao principal. Para ele, a casa falhava em itens básicos de segurança, como iluminação de emergência.

Legislação exige ao menos duas saídas

A ausência de saídas de emergência para uma evacuação rápida e a falta de comunicação entre os funcionários da casa foram erros fatais, na avaliação do coordenador do Grupo de Análise de Risco Tecnológico e Ambiental da Coppe/UFRJ, Moacyr Duarte:

— A cadeia de responsabilidades nessa tragédia é enorme. Qualquer plano de emergência prevê a evacuação de um local em menos de cinco minutos.

Mesmo antiga, a legislação atual contempla os pontos básicos de segurança, diz. Para o especialista, a tragédia não foi uma fatalidade, mas uma sequência de erros banais:

— A configuração da boate é inadmissível em qualquer lugar do mundo. Nem janelas tinha. Qualquer inspeção básica de bombeiro não daria autorização para funcionar.

O fato de as saídas de emergência não atenderem a requisitos mínimos tornou impossível que todos saíssem com vida durante a correria, considera o engenheiro de segurança do trabalho Rogério Bueno de Paiva, professor da Unisinos, que destaca a falha dos extintores e a má sinalização como fatores importantes.

Já o professor Luiz Carlos Pinto da Silva Filho, diretor do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas em Desastres da UFRGS, sugere simplificar a legislação para aumentar a fiscalização dos estabelecimentos.

— Não podemos fechar os olhos para o risco. Para fazer jus à memória dessas vítimas, precisamos fiscalizar, denunciar — disse.

O que não atendia às regras na Kiss

Sinalização e iluminação de emergência

- A casa noturna deveria contar com iluminação de emergência com alimentação independente à rede elétrica, para permitir que as pessoas conseguissem se dirigir às saídas. Informações de sobreviventes indicam que, se existia o sistema, ele não funcionou. Os textos e símbolos de sinalização são obrigatórios e devem ter, de preferência, cor branca sobre fundo verde-amarelado, para melhor visualização através da fumaça, admitindo-se o uso da cor vermelha. Vítimas relatam que tiveram dificuldade de se orientar, o que pode indicar a ausência ou deficiência no sistema de sinalização.

Corredores de escape

- Nenhum corredor de acesso às saídas pode ter largura inferior a 1m10cm. A largura é calculada para permitir que em cada corredor seja possível a passagem de duas filas de pessoas, cada uma ocupando 55 centímetros de espaço. Nessas condições, conforme a norma, 60 a 100 pessoas poderiam sair do local a cada minuto. Se a boate tivesse seis metros de portas, seria possível a saída de até 600 pessoas por minuto. A evacuação do local, portanto, poderia ser feita em menos de três minutos.

Sistema de alarmes

- Em qualquer emergência em local público deve ser acionado um sistema de alarme. O aviso deve ser coordenado, com comunicação de rádio entre os seguranças. Na boate Kiss, enquanto um segurança combatia o foco do fogo com um extintor de incêndio, outro funcionário da mesma equipe barrava as pessoas na saída. A comunicação entre a equipe de segurança é fundamental em casos de emergência.

Revestimento acústico

- O artigo 17 da lei municipal de Santa Maria veda o uso de material "de fácil combustão e/ou que desprenda gases tóxicos em caso de incêndio" em revestimento de casas noturnas. Autoridades que estiveram no interior da Kiss afirmam que o revestimento acústico não era adequado e foi todo consumido pelo fogo. A Polícia Civil terá de apurar como o uso do material não foi questionado pelos responsáveis pela vistoria.

Portas de saída

- A boate Kiss deveria ter pelo menos duas saídas distintas. Considerando a área do estabelecimento, 615m², a soma da largura das portas não poderia ser menor do que seis metros — ou seja, duas portas de três metros. A boate, no entanto, tem só uma porta, para entrada e saída, que, totalmente aberta, chega a apenas três metros. Só estabelecimentos enquadrados como bar podem ter uma porta — mesmo assim, pode-se exigir mais de um acesso em casos de bares com mais de um andar ou de grande extensão.

OAB cobra "responsabilização ampla"


A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS) divulgou nota ontem cobrando "responsabilização ampla" dos culpados na tragédia na boate Kiss.

— É impossível dissociar a responsabilidade do ocorrido a uma falha do poder público. A investigação e a eventual responsabilização dos culpados precisa ser ampla — disse o presidente da OAB/RS, Marcelo Bertoluci.

A boate Kiss operava com licença fornecida pelo Corpo de Bombeiros vencida desde agosto, além das falhas graves listadas por especialistas (acima).

— É uma calamidade que a casa estivesse em funcionamento — complementou o presidente da entidade.

Nesta segunda-feira, Bertoluci nomeou o advogado Eduardo Jobim, conselheiro da OAB em Santa Maria, para acompanhar o inquérito.

Polícia faz buscas em outros estabelecimentos comerciais de sócio da Kiss

A Polícia Civil cumpriu três mandados de busca e apreensão na tarde desta segunda-feira, atrás de documentos que pudessem ajudar na investigação do incêndio na boate Kiss.

Dois deles foram na boate Absinto e na cervejaria Floriano, estabelecimentos que pertencem a um dos sócios da Kiss, Mauro Hoffmann. O terceiro mandado foi cumprido na casa de um dos funcionários da boate, cujo nome a polícia não revela.

De acordo com o delegado Sandro Meinerz, as operações não tiveram resultado positivo, pois nenhum indício que pudesse colaborar com a investigação foi encontrado.

Além disso, o delegado afirma que a perícia realizou trabalho intenso na Kiss durante o dia e que foram ouvidas cerca de 20 testemunhas.

Meinerz ainda disse que a mãe e a irmã de Kiko, nos nomes de quem a boate está registrada, devem ser intimadas a depor nos próximos dias e não descarta que elas possam ser responsabilizadas pelo incêndio.

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