Carta aberta ao Demétrio Magnoli

Por Fátima Mello 
No Escrevinhador

Demétrio Magnoli,

Li com atenção e espanto seu artigo publicado no Globo de 31/1/2013 “Lula e a falência da ‘Doutrina Garcia‘”. Sou membro de uma organização da sociedade civil brasileira – FASE – e de uma rede – Rede Brasileira Pela Integração dos Povos/REBRIP – cuja atuação nacional, regional e global se orienta pela defesa dos direitos humanos, da sustentabilidade, da redução das desigualdades dentro e entre países. É com este olhar que atuamos sobre a política externa brasileira. E é por isso que tanto me surpreende sua avaliação.

Em primeiro lugar sua referência a um suposto “fracasso estrondoso da política externa – e da crise regional que se avizinha” não coincide com os fatos. Antes da era Lula o Brasil entrava pela porta dos fundos do sistema internacional; hoje entra como protagonista nos principais fóruns de negociação global. Antes de 2003 a região encontrava-se imersa em uma profunda crise resultante do receituário do Consenso de Washington que acirrava o que era e continua sendo a pior enfermidade entre nós, as desigualdades. As urnas de diversos países da região deram um basta e inauguraram um novo ciclo político, que com contradições e fortes condicionamentos externos tenta se aproximar das demandas populares por inclusão social. A região estava prestes a se tornar oficialmente um protetorado dos EUA se as negociações da ALCA não tivessem sido esvaziadas pela política externa brasileira em concertação com países vizinhos.

O que o Sr. chama de uma suposta Doutrina Garcia prefiro definir como diretrizes de política externa definidas e compartilhadas por todo o governo. Em 2003 o Itamaraty formulou duas propostas cruciais para o enfrentamento das assimetrias de poder entre países: propôs a criação do G20 na reunião ministerial da OMC em Cancun e apresentou a proposta de negociação em três trilhos da ALCA, o que efetivamente esvaziou a desmedida ambição dos EUA. Ambas propostas tiveram o mérito de sintonizar a comunidade internacional com a necessidade de inclusão de novos atores no processo decisório, sinalizando que o mundo de fato estava entrando numa era multipolar. O que o Sr. chama de “fracasso estrondoso da política externa” colocou o Brasil como membro dos BRICS, do G20 financeiro, do IBAS, dos BASIC nas negociações de mudanças climáticas; na região, a inclusão da Venezuela no Mercosul resulta em um peso econômico infinitamente maior ao bloco. Além disso apesar do ódio que a elite tem contra Chavez o fato é que hoje a Venezuela é o país menos desigual na região.

A necessidade de uma doutrina a que se refere o ex-presidente Lula me parece referida a urgência de construirmos uma identidade e projeto regionais que auxiliem a transição de uma posição até então submissa e periférica para outra constituída pela articulação de interesses econômicos e políticos comuns e por aproximações culturais e simbólicas que nos unem como povos que têm uma história compartilhada.

A suposta “crise regional que se avizinha” ou ainda a “desintegração da América Latina” supostamente evidenciada na Aliança do Pacífico também não sobrevivem aos fatos. Como assinalou José Luís Fiori na Carta Maior “este `cisma do Pacífico’ tem mais importância ideológica do que econômica dentro da América do Sul, e seria quase insignificante politicamente se não fosse pelo fato de se tratar de uma pequena fatia do projeto Obama de criação da “Trans-Pacific Economic Partnership” (TPP), peça central da sua política de reafirmação do poder econômico e militar norte-americano, na região do Pacífico.”

Apesar de apoiar as diretrizes gerais da política externa brasileira dos últimos dez anos, como integrante de movimentos sociais que lutam por justiça e sustentabilidade temos muitas críticas e propostas pois não há dúvida que muitos são os problemas e contradições envolvendo, por exemplo, as iniciativas de cooperação e investimentos internacionais do Brasil, bem como a insustentabilidade ambiental na qual se ancora a ação externa do país. O problema é que o viés claramente marcado pelo ódio de classe e ideologicamente preconceituoso de críticas como a sua nos impedem de realizar um debate de qualidade.

Atenciosamente,
Fátima Mello

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