Uma história de amor que não há quem possa mudar

Em setembro de 1973, logo após o golpe militar de Pinochet no Chile, Rubens Lemos, jovem liderança do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, retornou ao Brasil depois de três anos no exílio.
Como disse aqui, ele tinha uma missão, mas acabou preso e torturado - na Colônia Penal em Natal e depois no DOI-CODI em Recife.
Após ser libertado com a interferência de sua família, voltou ao jornalismo na Tribuna do Norte.  Voltou, também, a fazer rádio.
Minha mãe, Aurea, ouvia-o desde antes do exílio.  Acho que já tinha se apaixonado por sua voz.  Quando conheceu meu irmão Fábio, brincou, pedindo que não olhasse em seus olhos. "Você tem o mesmo olhar envolvente de seu pai", disse.
No rádio, Rubens anunciou que estava à procura de uma casa para morar.  Mamãe indicou que próximo de onde morava, no Barro Vermelho, havia um imóvel para alugar - próximo à antiga escola municipal João XXIII, no Baldo.
Marcaram um encontro para que meu pai conhecesse a casa.
Era o início de 1974.  Não demorou muito para que eles começassem um relacionamento de pouco mais de cinco anos.  Mamãe engravidou em meados de 1978 e eu nasci em 3 de maio de 1979.
Assim como tenho orgulho da história de meu pai, tenho também da história de minha mãe.
Mamãe, mesmo que não tivesse ingressado em nenhum movimento armado contra a ditadura, era amiga de um grupo de jovens estudantes potiguares que, posteriormente, viriam a fazer seu barulho na luta contra o regime.  Entre eles, o jovem Silton Pinheiro, companheiro do mesmo PCBR de meu pai.
Mas não foi o PCBR - que ela sequer conhecia - que a uniu a Rubens.
Quando conheceu meu pai, mamãe tinha 29 anos.  Ele tinha 33.
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Quando eu tinha sete para oito anos, mamãe começou a cursar o curso de licenciatura em Ciências Sociais.  Muitas vezes, sem ter com quem me deixar, ela me levava para as aulas.
Confesso que não achava ruim frequentar as suas aulas.  Adorava pensar em política. Claro que devo ter feito minha mãe pagar diversos micos - e eu mesmo devo ter pagado.
Foi nessa época que li o primeiro livro na vida: "Capitalismo para principiantes", de Carlos Eduardo Novaes e desenhos de Vilmar.  Há um exemplar desse livro guardado na estante para quando Alice souber e puder lê-lo.
***
Meu pai se acostumou a viver vidas clandestinas e fez isso inclusive no seio da família.  Quando conversamos hoje com seus companheiros de militância, notadamente o sobrinho Aldemir Lemos, não é incomum que irmãos e outros parentes se surpreendam ao descobrir o quanto ele fizera, de que ações participara, o que havia de luta por trás do ideólogo e intelectual.
Cresci conhecendo partes de sua história.  Quando trabalhou na Tribuna do Norte no fim dos anos 80, eu era habitué na redação.  Foi a primeira vez que entrei numa redação de jornal.
Naqueles anos, ele se dividiu entre Cuiabá, São Paulo, Natal.
Lembro de um episódio, acho que em 1993.  Ele havia voltado para Londrina.  Consegui seu telefone e liguei no dia dos pais.
Do outro lado da linha, meu pai chorou copiosamente: eu havia sido o único, dos sete filhos, que se lembrara dele naquele dia, me disse.
Acho que aquele momento o marcou.  Tempos depois, lembro da surpresa que me causou, uma manhã, Djazilda Mafra, ícone de gerações de alunos do Colégio das Neves, onde estudava, me chamando para atender uma ligação telefônica.
Do outro lado estava meu pai.  Informava que estaria chegando a Natal e que queria que eu estivesse com ele.
Fazia tempo que não o via.
Ele chegou e foi se hospedar na casa de sua irmã, Miriam, em uma Jaguarari ainda de terra batida.  Fui vê-lo.  Conversamos longo tempo.  Mostrei-lhe minhas poesias, falei de minhas ideias políticas, discutimos o socialismo.
Fomos a um barzinho e continuamos a conversa.
No outro dia, fomos à minha casa e foi mais um dia inteiro de conversa.  Contou-me do filho que teria tido no Chile - Juan Ernesto.
Quase todos os dias nos falávamos por telefone.
Quando Fernando Henrique foi eleito, disse que o ex-presidente era um rato: "Saiu do Brasil num vôo na primeira classe", afirmou.  Essa ideia de FHC como rato me fez escrever um poema: "Frustrante História de um Camudongo".  Mas não recusou quando foi sondado pelo ministério do Esporte para coordenar um projeto - o ministro, Pelé, era casado com sua sobrinha Assíria.
Uma época, enfrentou um de seus problemas de saúde, decorrente da tortura e agravado pela bebida, e foi internado no Hospital da Polícia Militar.  Lembro da minha angústia quando via meu pai gemendo de dor.  Naquela enfermaria de Hospital, quando passei a noite com ele, conheci detalhes horripilantes das formas como pessoas são torturadas - e como essas torturas duram pelo resto da vida.
Chegou a morar num apartamento em um imóvel comercial de Jussier Santos. Tempos depois, meu pai foi morar com sua irmã Rute.  A sua situação era bastante delicada.  Meus irmãos Fábio e Marcos vieram a Natal.  A tentativa era resgatar sua saúde.  Todos os irmãos que à época tinham emprego - eu era universitário não fui incluído no rateio - ratearam os custos de uma internação do pai.  Rubinho nos disse que estavam jogando dinheiro fora.  A internação não durou uma semana.
Ligava quase todos os dias para a casa de minha tia a fim de falar com ele.  Não levou muito tempo para que ele não nos atendesse mais e, tempos depois, ele foi internado e veio a falecer.  Era 1999.  Eu tinha 20 anos.
Ainda que não tenha sido um pai perfeito, como nenhum é, ele se tornou a referência de todos nós.  Lucinha, Marcos e Fábio, por exemplo, ajudaram a fundar o PT em Londrina.  Marcos ainda seguiu seu exemplo de maneira mais radical, tomando parte no mesmo PCBR do pai.  Foi preso com 19 anos depois de uma ação mal-sucedida em Salvador.
Não posso negar que sua história profissional e política me inspirou a ser jornalista - coisa que eu resolvi aos 13 anos - e inspira minha militância.
É uma pena que pela distância de alguns ou por outros motivos alheios, nos atuais encontros da família Lemos, apenas eu e minha filha representemos os descendentes de Rubens.  São, até onde se sabe, sete filhos, doze netos e dois bisnetos de um marxista-lenista que, como disse em um poema, amou a Revolução como não amou nenhuma mulher na vida.  Mesmo sendo de família evangélica, Rubens não acreditava na vida eterna.  Eternizou-se em cada um de nós.
Muito prazer.
Meu nome é Daniel Dantas Lemos. Filho de Rubens Manoel Lemos e Aurea Maria Dantas.  Irmão de Lúcia Irene Reale Lemos, Marcos Wilson Reale Lemos, Fábio César Reale Lemos, Rubens Manoel Lemos Filho, Ana Yasmine Catarina Melo Lemos, Camilo Emanuel Melo Lemos. Marido de Kênia Andrade do Nascimento Gondim Lemos e pai de Alice Gondim Dantas Lemos.
Não há quem possa mudar isso.
***
É uma pena que nos últimos anos eu tenha enfrentado o ódio insano de um jornalista na cidade que costuma me tratar como indigente moral, filho de goiamum, filho de chocadeira, e que disse de mim, em um dos textos recentes: "nasceu macunainamente por um acidente, fruto de uma trepada enraivecida que um intelectual deu com a primeira aparecida, sua mãe, no único e claro objetivo de vingar-se da esposa oficial que o acusara, horas antes, de raparigar pelos bares da vida".  Quando me encontra na rua, não tem coragem de me encarar nos olhos ou à minha família.
Passei no vestibular em 1996, aos 17 anos incompletos.  Cursei quatro anos e meio de jornalismo.  Fiz um único estágio, na Esmarn com a grande Cione Cruz, quando o diretor da escola era o atual desembargador, então juiz, Virgílio Macedo Júnior.
Após terminar o curso, passei dois anos em Fortaleza estudando teologia (havia feito, concomitantemente ao curso de jornalismo um de nível médio de missões), eu que me tornara evangélico no segundo semestre de faculdade.
Voltando de Fortaleza, decidi me dedicar ao mestrado.  Defendi minha dissertação, no Programa de Estudos da Linguagem da UFRN, em março de 2006.  Em julho, aprovado em concurso público, ingressei na Petrobras.
Em 2008, entrei no doutorado.
Em abril do ano passado, defendi minha tese.  Logo em seguida, em maio, passei no concurso para professor do curso de jornalismo da Universidade Federal do Ceará.  Pedi demissão da Petrobras no mês seguinte.
Minha primeira e única filiação partidária aconteceu em 2006, influenciado pelo advogado Daniel Alves Pessoa e pelo presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Marcos Dionísio Medeiros Caldas.  Estou no PCdoB até hoje.
Em nenhum desses espaços, em nenhum desses momentos, dependi de parente, amigo ou do nome do meu pai para que portas fossem abertas.  Nunca recebi um salário ou pagamento do qual me restasse dívida a alguém.
Não escrevo este blog, como nunca escrevi nenhum, porque dele dependa financeiramente ou porque sou pago para ser a pena de alguém.  Escrevo o que penso, o que apuro, o que descubro, o que fontes me dão ou sugerem.
Não escrevo para ser respeitado ou admirado.  Não quero elogios - nem desejo que jornalistas ou empresários acreditem em mim.  Se ninguém quiser acreditar no que escrevo ou seguir minhas ideias, não me incomodarei de voltar a ter os trinta leitores diários que eu tinha em abril de 2011, antes do #ForaMicarla.
Não escrevo o blog para agradar a ninguém que não seja eu.  Escrevo porque acredito numa comunicação diversa, plural, livre.  Escrevo porque acredito nas redes sociais - minhas pesquisas de mestrado e doutorado foram sobre blogs.
Se alguém deseja me queimar, que me queime.  Isso não me importa porque não dependo de minha imagem para manter a mim e a minha família.  Não existo para detratar ninguém.
Existo na rede para lutar pelas coisas em que acredito.  O que publico aqui o faço porque acredito que é possível um mundo diferente.
Sou idealista.  Quero mudar o mundo, mesmo que não consiga.  Isso aprendi com meu pai, mesmo na distância do relacionamento.
Se existo no mundo virtual, sou passível de ser criticado, questionado, contestado.  Agressão pessoal é difícil de suportar, mas eu tento.  Agora, tentar atingir outras pessoas por minha causa é baixeza, canalhice.  Tentar ofender minha mãe supera o limite do razoável.
Não, não sou um "filho de goiamum", "de chocadeira", "de uma aparecida".  Sou filho de uma mulher honrada que suou muito para me dar amor e educação.  E de um pai cuja história se confunde com parte da história da cidade, do estado, do país.
Suas palavras não apagarão quem eu sou, como também não apagarão Leninha, primeira esposa de meu pai, Aurea, minha mãe, Lúcia, Marcos e Fábio, meus irmãos.
Não tenho culpas em ser quem sou, mas você parece ter alguma culpa em ser quem é.

Comentários

Unknown disse…
Daniel, meu irmão. Excelente depoimento. A história que nosso pai viveu com tua mãe foi intensa e graças à ela hoje posso conviver contigo, Kênia e Alice. Eu morava em Natal, na casa de tia Miriam, quando você nasceu. Me recordo muito bem...

Há verdade em todo teu texto. Como tua irmã mais velha, sinto muito que tenhamos que nos expor tanto todas as vezes em que tentam nos fazer invisíveis e cutucam nossas feridas.

Sou Lucia Irene Reali Lemos (50), nascida no dia 09 de julho de 1962, em Londrina,Paraná.
(Mãe de Camillo (32), Juliana (28) e João Miguel (26), avó de João Henrique (12) e Luana (8), e companheira, há 11 anos de Angelo Silva)

Primeira filha do jornalista e radialista Rubens Manoel Lemos e da Sra.Maria Helena Reali Lemos, enfermeira aposentada,
casados no Civil (Cartório de Registro Civil -1º Ofício, Rua Pio XII, 65 - Centro - Londrina - PR - CEP: 86020-380)
no dia 05 de setembro de 1961 e no religioso (Igreja Presbiteriana Independente de Londrina) no dia 06 de setembro de 1961.

Dessa união nasceram meus dois irmãos: Marcos Wilson Reale Lemos(49) nascido em 18 de dezembro de 1963 em Londrina, Paraná e Fábio Cesar Reali Lemos(45), nascido em 28 de maio de 1967, em Natal, Rio Grande do Norte.

Esclareço que minha mãe não é falecida, hoje ela tem 73 anos e reside em Londrina.Ela e meu pai nunca se divorciaram,
quando meu pai faleceu (04 de junho de 1999) ele ainda era legalmente casado com minha mãe.

Portanto, se formos seguir
os padrões da hipócrita sociedade em que vivemos, tenho muitos outros irmãos "ilegítimos" e nem por isso e tão pouco os renego:

Sou irmã de Rubens Manoel Lemos Filho, Ana Yasmine Catarina Melo Lemos, Camilo Emanuel Melo Lemos, e Daniel Dantas Lemos, Juan Ernesto, e com certeza,de mais uns três que não se revelaram, ainda...

Assim como também sou tia de 6 meninas e 3 meninos.

E muita, muita história de nosso pai com a gente pra contar.

- Tem uma passagem na minha infância que eu nunca esqueço: em 1974 o país teve um surto de meningite, eu tinha 12 anos e fui acometida pela doença, dos 11 casos em Londrina , eu fui um deles - fiquei entre a vida e a morte durante 40 dias - internada no Hospital São Leopoldo - onde minha mãe trabalhava como enfermeira. Minha tia Lucia Reali (irmã de minha mãe) que trabalhava no Banco do Brasil, conseguiu passar um "telex" para Natal e avisaram meu pai,ele foi à Londrina com autorização da polícia para me ver (ele não podia sair da cidade, estava em liberdade vigiada), meu pai chorou muito e me entregou, (mesmo sabendo que eu não podia me alimentar) um pacotinho de balas de gomas coloridas que trazia no bolso de uma jaqueta azul marinho que usava. Foi o doce mais doce em toda a minha vida...Passei anos acreditando que foi ele que trouxe o remédio que me curou... Nos momentos de carinho ele me chamava de "Kiki" diminuitivo do apelido de Toquinho, apelido esse pelo qual, até hoje, sou chamada pelos meus irmãos Marcos e Fábio... e alguns primos e primas.

Viu? Há muito ainda pra se recordar.