O PLC 132, o indiciamento e a usurpação de funções do Ministério Público

 (ou “O aborto da persecução penal”)
Por Wendell Beetoven

Há quem duvide que o aquilo que já é ruim possa piorar. Infelizmente, enganam-se. Recentemente foi aprovado o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 132, ainda pendente de sanção ou veto presidencial, que, a pretexto de dispor “sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”, inovou em vários aspectos, sendo um deles a criação do mecanismo do indiciamento, previsto no seu art. 2º, §6º, nos seguintes termos:

“O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”

Apesar o termo indiciamento ser bastante difundido na prática policial, não havia previsão legal para a sua realização, até porque era um ato procedimental irrelevante, que tradicionalmente constava do relatório final do inquérito, no qual a autoridade policial, após relatar as evidências coletadas, atribuía ao suspeito a condição de indiciado. A prática, informal, era compatível com a natureza jurídica do inquérito policial, que é uma peça informativa, pré-processual, produzido de forma inquisitorial.

O referido PLC 132 – que está diretamente relacionado com a PEC 37 – pretende, de forma sutil e furtiva, transformar o inquérito policial numa condição de procedibilidade da futura penal. É nesse contexto, que surge, como algo aparentemente sem maior importância, a figura do indiciamento, agora com nova roupagem e status legal. Seria somente mais uma burocracia inútil se não fosse o seu potencial de complicar ainda mais a persecução penal.

Se o projeto for sancionado e virar lei, o suspeito de um crime somente poderá ser indiciado por ato de um delegado de polícia, devidamente fundamentado, e quando estiverem reunidos, no inquérito policial, os elementos probatórios suficientes a indicar a autoria, materialidade e as circunstâncias do fato delituoso. O delegado de polícia, doravante, além de apurar fatos, deverá proferir decisão fundamentada, após “análise técnico-jurídica”.

Levando em conta o princípio básico de interpretação de que a lei não contém termos inúteis, é forçoso concluir que o indiciamento passará a ter alguma utilidade. Mas qual? A resposta mais plausível é mudar a situação jurídica do eventual suspeito, que, a partir desse ato, passa a ostentar a condição de indiciado, porque contra ele, segundo a análise técnico-jurídica do delegado, foram reunidos os elementos probatórios suficientes a implicá-lo no crime investigado. Mas isso não pode ser apenas um jogo de palavras, de simples troca do termo “investigado” ou “suspeito” por “indiciado”. Esse indiciamento, então, só faria sentido se, a partir dele, o indiciado passasse a gozar de direitos que não possuía ou não podia exercer como mero suspeito ou investigado.

Ora, a comprovação da materialidade do delito, das suas circunstâncias e os indícios da autoria são, na prática, os mesmos elementos de que se vale o Ministério Público para a formação de sua convicção (opinio delicti) e o oferecimento da denúncia (CPP, art. 41). Esse juízo de adequação dos fatos investigados à norma penal, que era privativo do promotor/procurador, é antecipado e conferido ao delegado de polícia.

Poder-se-ia dizer que se trata de algo irrelevante, uma vez que o indiciamento não vincula a opinio delicti, privativa do Ministério Público, como titular da ação penal. Mesmo assim, o ato indiciamento, pela polícia, por modificar a condição jurídica do investigado, torna-se passível de questionamento, inclusive mediante habeas corpus, produzindo, desta forma, uma discussão antecipada sobre a presença ou não dos requisitos da denúncia (que são os mesmos do indiciamento).

O indiciamento, no curso da investigação, quando o inquérito policial nem sequer foi concluído, nem o Ministério Público dele tomou conhecimento, terá o poder de antecipar a judicialização do debate em torno da autoria, materialidade e circunstâncias do fato. O que somente seria contestado depois da denúncia e – acaso recebida pelo juiz – da citação, na resposta escrita da defesa (CPP, art. 396), poderá a ser discutido, em habeas corpus, logo depois do indiciamento.

Como se sabe, no habeas corpus, o Ministério Público funciona, em regra, como custos legis, e não como parte. É dizer: num HC contra ato de delegado de polícia, impetrado em primeira instância, ter-se-ão as alegações do impetrante (indiciado, advogado ou qualquer outra pessoa) e as informações da autoridade apontada como coatora (o delegado); depois, um parecer do Ministério Público e, por fim, a sentença do juiz. A ação penal poderá ser fulminada sem sequer haver nascido, ou seja, uma espécie de aborto jurídico.

Assim, melhor do que aguardar uma eventual denúncia do Ministério Público, para apresentar a defesa, é antecipar essa contestação e fazê-la ainda durante a tramitação do inquérito para, elidindo os elementos em que se baseia o indiciamento (materialidade, autoria e circunstâncias do fato), inviabilizar o próprio oferecimento da denúncia.

O indiciamento, assim, deixa de ser um ato irrelevante, sem consequência alguma, tornando-se um ato que afeta a esfera de direitos do investigado, mudando o seu status jurídico na seara criminal. O projeto de lei deixa isso muito claro quando diz que o indiciamento “dar-se-á por ato fundamentado”. Ora, na praxe jurídica brasileira, a fundamentação só é exigida nos atos que contêm carga decisória, ou seja, nos que tenham alguma relevância, e não nos de mero expediente. A fundamentação serve para justificar a motivação do ato, a fim de permitir a sua sindicabilidade, isto é, o seu controle – que em matéria criminal será sempre judicial.

Com efeito, uma vez provocado, o Poder Judiciário terá que decidir, haja vista o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV). O meio mais rápido e eficaz de provocar o controle jurisdicional, nesse caso, será o habeas corpus. O juiz, à vista das informações prestadas pela autoridade policial, decidirá pela denegação ou concessão da ordem. Se denegar, por reconhecer a regularidade do indiciamento, por reunir os seus elementos (que são os mesmos da denúncia), estará antecipando e até subtraindo a opinio delicti do Ministério Público; se, porém, a ordem for concedida, para anular o indiciamento, em razão da inocorrência daqueles elementos, ficará inviabilizado, na prática, o oferecimento da denúncia.

Em qualquer hipótese, o indiciamento dá ensejo a um precoce controle jurisdicional da investigação policial, em substituição ao controle externo que a Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público (art. 129, VII). Esse controle ministerial, aliás, é posto em xeque por outro dispositivo do mesmo PLC 132 que diz que o delegado conduzirá a investigação “de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico”, o que certamente será utilizado como fundamento à recusa, por delegados, ao cumprimento de requisições do Ministério Público.

O PLC 132, como um todo, representa um retrocesso, na medida em que consolida um instrumento obsoleto como o inquérito policial como o principal meio de investigação policial, favorecendo ainda o bacharelismo ao privilegiar uma classe de policiais civis (os delegados) em detrimento das demais (agentes, escrivães peritos e papiloscopistas), criando uma espécie de “magistratura policial”. Nesse contexto, o indiciamento é mais uma burocracia inútil que, agora, ganha o potencial de repercutir negativamente na persecução penal, sem trazer, em contrapartida, qualquer garantia adicional ao investigado. A segurança pública, portanto, em nada evolui ou melhora com a alteração legislativa.

* O autor é Promotor de Justiça (MPRN), especialista em Direito Processual Civil e mestrando em Segurança Pública.

Comentários

Unknown disse…
Vcs cansaram de dizer que o MP deveria investigar porque que a polícia não tem autonomia.Isso era falácia. O Mp não quer uma polícia forte, pois ele se eleva em cima das mazelas da polícia.
virginia porto disse…
O que o nobre promotor deveria saber é que o indiciamento não é um mero expediente, ele causa efeitos, dentre eles a identificação criminal, o lançamento do nome nas redes policiais, entre outros. Dizem que querem investigar porque o delegado de polícia não tem autonomia e agora vem com essa. Por que tanta raiva dos Delegados, senhor Promotor, talvez uma frustação, pela falta de coragem de assumir a carreira policial. Cada um no seu quadrado.
virginia porto disse…
O que o nobre promotor deveria saber é que o indiciamento não é um mero expediente, ele causa efeitos, dentre eles a identificação criminal, o lançamento do nome nas redes policiais, entre outros. Dizem que querem investigar porque o delegado de polícia não tem autonomia e agora vem com essa. Por que tanta raiva dos Delegados, senhor Promotor? cada um no seu quadrado.
virginia porto disse…
O que o nobre promotor deveria saber é que o indiciamento não é um mero expediente, ele causa efeitos, dentre eles a identificação criminal, o lançamento do nome nas redes policiais, entre outros. Dizem que querem investigar porque o delegado de polícia não tem autonomia e agora vem com essa. Por que tanta raiva dos Delegados, senhor Promotor. Cada um no seu quadrado.
virginia porto disse…
O que o nobre promotor deveria saber é que o indiciamento não é um mero expediente, ele causa efeitos, dentre eles a identificação criminal, o lançamento do nome nas redes policiais, entre outros. Dizem que querem investigar porque o delegado de polícia não tem autonomia e agora vem com essa. Por que tanta raiva dos Delegados, senhor Promotor? Polícia Forte é que acaba a impunidade.O que o nobre promotor deveria saber é que o indiciamento não é um mero expediente, ele causa efeitos, dentre eles a identificação criminal, o lançamento do nome nas redes policiais, entre outros. Dizem que querem investigar porque o delegado de polícia não tem autonomia e agora vem com essa. Por que tanta raiva dos Delegados, senhor Promotor? Cada um no seu quadrado.