O que Tim Maia tem a ver com a regulação econômica da mídia?

A Globo se enredou em uma tosca manipulação na tentativa de se apropriar da biografia de Tim Maia e de proteger sua estrela Roberto Carlos.

A manipulação - que supera os limites da criação artística e da licença poética - se tornou mais escandalosa em virtude de a emissora haver transformado o filme, dirigido por Mauro Lima, em um docudrama em dois episódios. Ao adotar o docudrama como linguagem - documentário pontuado pela ficção exibida no filme -, a emissora apostou na verossimilhança como regra. Ou seja, estabeleceu um contrato de leitura com o espectador para que este adotasse como real a versão, fictícia, que procurava vender acerca da história de Tim, da sua relação com Roberto Carlos, e tudo o mais.

O Diário do Centro do Mundo abordou o tema (que também foi notícia em outros sites) em alguns textos neste sábado. Aqui Kiko Nogueira defende que o problema com o personagem Roberto Carlos na série/filme é um apenas um detalhe no que ele chama de "falsificação da biografia de Tim Maia". Aqui, em texto reproduzido do MSN, o desabafo de Leo Maia acerca do desagrado com o produto veiculado pela Globo: “Meu pai não merecia algo tão tendencioso”. Leo promete um documentário contado a história da vida do pai.

Mesmo tendo sua própria gravidade, o caso de Tim Maia se converte em sintoma de algo muito pior: a sociedade brasileira não tem mecanismos eficazes de defesa contra a manipulação das informações por parte da mídia e, por isso, tende a crer serem lebres os gatos que lhes são vendidos pela mídia. Se a emissora vendeu ao espectador uma obra fictícia no formato de docudrama como se pode afirmar que não é isso - obra fictícia - toda a produção jornalística da Globo? Sua credibilidade, portanto, se põe em xeque.

No entanto, não se tem uma defesa eficaz e, desse modo, por exceção daqueles que tiveram acesso ao debate sobre o tema na Internet, a versão fictícia sobre Tim Maia e Roberto Carlos exibida esta semana na maior emissora do país foi tornada real para a maior parte do público que a assistiu.

Apesar de sua gravidade, pior é o que aponta como sintoma este caso, como disse acima. Tim sabia, ainda que não houvesse ainda tal discussão na ordem do dia, do que se tratava quando deu a seguinte entrevista a Jô Soares, quando este ainda estava no SBT.

A opinião do próprio Tim e o caso relacionado a sua cinebiografia, a meu ver, só ajudam a reforçar a urgência da discussão sobre a regulação da mídia no Brasil.

A Constituição Federal proíbe a censura, um avanço democrático imprescindível. Por exemplo, o Art. 220 afirma que a "manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Por isso mesmo, os oligopólios de mídia utilizam como estratégia discursiva o recurso à “tentativa de censura” sempre que se pleiteia regulamentar o que se prevê a própria Constituição na direção de uma mídia mais democrática e transparente, contra quem a sociedade tenha defesas garantidas.

Exemplo dessa estratégia discursiva se deu quando se procurou regulamentar a classificação etária indicativa. O parágrafo terceiro do Art. 220 da CF estabelece que compete à lei federal: "I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”. Ou seja, discutir a classificação indicativa dizia a respeito a regulamentar este item constitucional. Como feria o interesse comercial da mídia, logo a tentativa foi taxada de censura. E parte da opinião pública, certamente, irrefletidamente comprou tal versão. Evidente que hoje, anos depois deste artigo ser regulamentado por legislação, ninguém em sã consciência pensa na classificação indicativa em termos de censura.

A mesma estratégia discursiva é utilizada quando se discutem dois itens fundamentais para a defesa da sociedade em torno das questões aqui expostas. A primeira, tramitando no Congresso Nacional na forma de um projeto do senador Roberto Requião (PMDB/PR), é o direito de resposta que deixou de estar regulamentado no país desde que o Supremo Tribunal Federal derrubou a validade da Lei de Imprensa em 2009. A CF prevê o direito de resposta proporcional ao agravo, mas sem uma lei que o regulamente ele fica inalcançável para a maior parte da sociedade, uma vez que para ser garantido necessariamente a via judicial deverá ser acionada.

O segundo é o projeto de regulamentação econômica da mídia. Está escrito no Art. 220 da Constituição: "§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.” Como em qualquer ramo da economia, a Constituição Federal proíbe práticas monopolistas na mídia. Como em qualquer ramo da economia, o monopólio é uma ameaça aos direitos do consumidor, que perde a capacidade de se defender, por exemplo, da emissão de um programa fictício vendido como docudrama.

A mesma Constituição que estabelece que lei alguma pode representar censura à liberdade de expressão entende que monopólios de mídia são ameaça. Na verdade, o monopólio da informação representa, justamente, uma forma facilitada de controle e manipulação - além, é claro, de uma forma eficiente de censura. Como quando ao público são sonegadas informações sobre um artista ou sobre as denúncias de corrupção envolvendo o PSDB nos contratos de trens e metrôs de São Paulo.

Uma vez, um amigo me perguntou porque precisa de uma lei, já que a Constituição já proíbe monopólio e oligopólio da mídia. Expliquei que a Constituição proíbe mas reservou à lei a definição do que é monopólio ou oligopólio e, mais importante, o que deve ser feito contra um conglomerado de mídia que, porventura, seja flagrado em monopólio. É de se esperar que seja obrigado a se desfazer de ativos.

Normalmente, são consideradas monopolistas (oligopolistas) concentrações econômicas de 20% do mercado - o que impede uma concorrência leal, saudável. No caso da mídia, tal concentração econômica é agravada pela ameaça à democracia - imagine um conglomerado de mídia com 40% de mercado que publique uma obra fictícia como se fosse uma notícia verdadeira, assim como a Globo fez com Tim Maia. O resultado poderia ser desastroso para a existência de um estado democrático de direito.

É o medo de perder o controle e ameaça econômica para quem quer ser dono do mercado da mídia que os faz gritar “censura" contra um projeto que, na verdade, visa nos proteger a todos das práticas predatórias de um mercado monopolizado.

Tim Maia tinha razão. O real, não o que a Globo inventou.