Rogério Marinho e o "crimepensar": O autoritarismo de uma proposta orweliana e macartista tupiniquim



"1984" foi uma espécie de testamento de George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair. Blair/Orwell morreu em 1950, de tuberculose.
Orwell lutou na Guerra Civil espanhola e nunca rompeu com uma visão de mundo revolucionária. Entendeu, antes de muitos, os riscos do totalitarismo soviético e dizia ser necessário fazer uma crítica à esquerda àquele totalitarismo.
É nesse contexto que precisam ser vistas suas duas grandes obras: "A revolução dos bichos" e "1984". Elas não denunciam a revolução, a esquerda nem o socialismo. Denunciam os totalitarismos, especialmente aqueles que se implantaram a partir dos processos revolucionários.
É de Orwell que vêm expressões como "Big Brother/Grande Irmão", símbolo do domínio totalitário sobre Oceânia em "1984".  A expressão que mais me diz em "A revolução dos bichos" é a subversão da proposta do velho Major de que "todos os animais são iguais mas uns são mais iguais que os outros". Síntese do totalitarismo.
No mundo distópico e autoritário de "1984" as crianças e jovens são estimulados a denunciar seus pais e professores por "crimepensar" à temida "polícia das ideias" - uma das práticas mais terríveis desenhada profeticamente por Orwell.
É nessa imagem que tenho pensado ao me lembrar do Projeto de Lei apresentado, com pompa e circunstância, pelo deputado federal tucano Rogério Marinho (RN) que pretende criminalizar o que chama de "assédio ideológico".  O deputado considera assédio ideológico "toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente".
É de temer quando a direita perde o pudor e propõe uma legislação descaradamente autoritária e ditatorial com a intenção de interferir na liberdade acadêmica e científica.
O que eu sinto é cheiro da distopia orweliana de "1984" no ar.  O que eu sinto é uma proposta que não se diferencia em nada a posições adotadas em regimes ditatoriais.
No pior estilo de "1984", o estímulo a que crianças e jovens denunciem seus professores por "crimepensar".
Fiquei pensando no meu caso: estou lendo muito material sobre "ideologia" a fim de preparar um conteúdo para uma possível disciplina que posso ministrar no próximo semestre. Ideologia, talvez o próprio Rogério Marinho não saiba mesmo tendo feito uma proposta para criminalizar "assédio ideológico", é tipicamente estudada não apenas nas ciências sociais como também nas ciências da linguagem. Em minha tese em estudos da linguagem, discuto a noção de ideologia, que está no centro de disciplinas como análise do discurso - lembro não ser à toa que este blog se chama "De olho no discurso": sempre me propus a realizar nele exercícios de análise do discurso.
Estou eu lá estudando de novo ideologia para transformar esse conteúdo em aula e discussão em sala.  Estudar ideologia significa, necessariamente, estudar Karl Marx porque este foi dos primeiros cientistas sociais a se preocupar com a ideologia.  Depois dele, ideologia foi sempre estudada basicamente por pensadores, cientistas e pesquisadores de esquerda - até porque, na sua conceituação primeira, ideologia em Marx se relaciona à luta de classes e só é possível em ser concebida por quem detém os meios de produção. Ou seja: somente os burgueses são, para Marx, capazes de elaborar uma concepção ideológica do mundo.
Claro que essa concepção avançou desde então, mas sem fugir muito da percepção de que há uma ideologia dominante - burguesa - que submete quaisquer possibilidades ideológicas dos demais, proletariados. Aliás, isso também é denunciado por Orwell em "1984".
O que importa é que estudar ideologia é estudar Marx e muitos dos seus descendentes intelectuais.  Portanto, ser-me-ia impossível estudar linguagem e mídia sem estudar ideologia e, estudando-a, não ler Marx e outros marxistas.
Por isso, pela própria natureza do que estudo, pesquiso e proponho em sala de aula, estaria naturalmente enquadrado na lei de segurança intelectual que quer implantar Rogério Marinho.  Seria vítima de seu estímulo às denúncias de crimepensar por parte de alunos.
Impressiona-me, nesta questão, além do autoritarismo desabrido que propugna Marinho (que se coloca como um deputado preocupado com a educação), sua incapacidade científico-intelectual uma vez que parece desconhecer até mesmo o que seja ideologia para fundamentar o que deseja criminalizar com o pomposo nome de assédio ideológico.
É de doer imaginar que possa haver apoio a um Projeto de Lei tão nitidamente autoritário, cerceador da liberdade de pensamento, liberdade de produção científica e acadêmica, ditatorial. É de doer que, em 2015, queiram ressuscitar as piores práticas de controle ideológico, de denuncismo, de, afinal, Macartismo. Rogério Marinho, parece, deseja ser o Joseph McCarthy tupiniquim e iniciar uma casa às bruxas, um mover anticomunista e inquisitorial nas cátedras e escolas do país.
Não é de duvidar que, em breve, alguém queira ressuscitar o valor do imprimatur e, assim, que a produção da ciência passe a somente ser publicada quando aprovada pela igreja ou por um Big Brother nos moldes de Rogério Marinho.

Comentários

Falas da Lucinha disse…
A proposta desse "ignóbil" deputado me fez recordar da minha infância no Grupo Escolar, lá em Londrina, no Paraná. Era o ano de 1971,onde já estava implantado pela ditadura, o decreto-lei 869 que tornou o ensino da disciplina Moral e Civica obrigatória nas escolas.A repressão era tão grande, que um dia no pátio,(todas as crianças enfileiradas pra cantar o Hino Nacional asteando a Bandeira do Brasil), eu não quis cantar,fui levada pra diretoria e lá recebi o "veredito": "- Lúcia Irene, você vai ficar uma semana sem brincar na hora do recreio e vai escrever no quadro negro a palavra BRASIL todos os dias antes da professora entrar na sala". Em Tempo: a diretora e as professoras sabiam que eu era filha de um exilado político.
Falas da Lucinha disse…
A proposta desse "ignóbil" deputado me fez recordar da minha infância no Grupo Escolar, lá em Londrina, no Paraná. Era o ano de 1971,onde já estava implantado pela ditadura, o decreto-lei 869 que tornou o ensino da disciplina Moral e Civica obrigatória nas escolas.A repressão era tão grande, que um dia no pátio,(todas as crianças enfileiradas pra cantar o Hino Nacional asteando a Bandeira do Brasil), eu não quis cantar,fui levada pra diretoria e lá recebi o "veredito": "- Lúcia Irene, você vai ficar uma semana sem brincar na hora do recreio e vai escrever no quadro negro a palavra BRASIL todos os dias antes da professora entrar na sala". Em Tempo: a diretora e as professoras sabiam que eu era filha de um exilado político.