A perversão de um Deus contra o jornalista

Quando na segunda-feira passada eu soube da morte, em acidente com helicóptero, do jornalista Ricardo Boechat, a primeira lembrança que me veio à mente foi de estar trocando óleo do meu carro em um posto de combustíveis em Fortaleza e ouvir seu discurso dirigido contra Silas Malafaia, ao vivo na BandNews.
Boechat, corretamente, vinculou o ataque sofrido por uma criança adepta do candomblé no Rio de Janeiro aos evangélicos neopentecostais e conservadores. Malafaia desafiou Boechat a um debate, ao que o jornalista respondeu sugerindo que o pastor... bem, você conhece o áudio:


Minha primeira homenagem a Boechat foi tuitar um #RIPBoechat com o link para este vídeo.
Não apenas eu lembrei desse episódio. Muitos evangélicos lembraram e passaram a atribuir a morte do jornalista a uma vingança de Deus:



Malafaia criticou os seguidores que disseram isso, dizendo que não teria negócio com um Deus que fizesse coisas assim.
Acontece que os seguidores de Malafaia aprenderam isso com o próprio Malafaia:


Essa era uma teologia do Antigo Testamento que se construía em torno do poder e que, ideologicamente, visava proteger o trono de Davi. Ainda que houvesse um Deus para vingar aquele que reagisse aos desmandos dos poderosos não há, no Novo Testamento, nenhum indício de que tal ideia, tal qual pregada por Malafaia e defendida por seus seguidores, vigoraria nos dias de hoje. É como se fosse necessário a ideia de um Deus vingativo depois que Jesus viveu, morreu e, para os cristãos, ressuscitou entre nós.
Os cristãos que atribuíram à vingança divina a morte de Boechat não seriam, por exemplo, capazes de justificar a morte do piloto - efeito colateral do Deus vingador?
Esses, de forma perversa, costumam defender que crer correto é mais importante do que o viver correto. A ortodoxia é mais importante que a ortopraxia. Crer correto salva alguém; o viver correto, não.
Alguém que pergunta se adianta ter amor ao próximo se não acreditar em Deus vai se submeter aos poderosos ainda que ajam sem amor. 
Alguém que pensa assim justifica, como Malafaia, o pastor ladrão, o padre pedófilo, o líder religioso explorador.


A ideia que tantos cristãos expuseram sobre a morte de Boechat, de forma tão perversa, tem total relação com a morte de Sabrina Bittencourt, a ativista que denunciou o líder espiritualista João de Deus e uns tantos outros líderes religiosos por diversos crimes sexuais.  A ideia de ficar calado contra o ungido de Deus que comete desvios, protegendo seu trono, só serve para a perpetuação de tantos abusos. Ao denunciar, Sabrina foi alvo de ataques de diversas ordens. E sucumbiu. Com alerta de gatilho, reproduzo abaixo um trecho de seu post de despedida:

Marielle me uno a ti. Somos semente. Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos! Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos. USEM A SUA PRÓPRIA VOZ. A SUA PRÓPRIA VONTADE. TOMEM AS RÉDEAS DE SUAS PRÓPRIAS VIDAS E ABRAM A BOCA, NÃO TENHAM VERGONHA! ELES É QUEM PRECISAM TER VERGONHA. (...) Gabriela Manssur, muito obrigada por me fazer ter esperança de que elas serão ouvidas e atendidas em suas necessidades. João de Deus, Prem Baba, Gê Marques, Ananda Joy, Edir Macedo, Marcos Feliciano, DeRose Pai, DeRose filho, todos os padres, pastores, bispos, budistas, espíritas, hindús, umbandistas, mórmons, batistas, metodistas, judeus, mulçumanos, sufis, taoístas, meus familiares, Marcelo Gayger, Jorge Berenguer, eu desconheço a sua infância e a sua criação pelo mundo, mas sei no meu íntimo que TODO MENINO NASCEU PURO e foi abusado, corrompido, machucado, moldado, castrado, calado, forçado a fazer coisas que não queria, até se converter talvez, cada um à sua maneira, em tiranos manipuladores (em maior ou menor grau) que ao não controlar os próprios impulsos, tentam controlar a quem consideram mais frágil e assim praticam estupros, pedofilia, adicções diversas... Eu sei, eu sinto, eu vi. Mas ainda assim, preferi SEMPRE ficar do lado mais frágil nesta breve existência: mulheres, crianças, idosos, jovens, povos originários, afrodescendentes, refugiados, ciganos, imigrantes, migrantes, pessoas com deficiência, gays, pobres, lascados, fudidos, rebeldes e incompreendidos... (...) Aos meus amigos, amadas e amantes, nos encontraremos um dia! Sintam meu amor incondicional através do tempo e do espaço. SIM e FIM.



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