João ao infinito

João morava naquela casa, com pelo menos uma dezena de outros idosos, há quase uma década.  Aos 76 anos, suas condições se debilitaram rapidamente nos últimos meses. Quando recebeu a visita de sua filha e seu neto, conversou sobre o desejo de reencontrar Clara.

João encontrou Clara mais ou menos um ano depois que se separou de Alice, mãe de sua única filha, Celina. Apaixonou-se e, numa relação cheia de encontros e desencontros, se relacionaram brevemente. 

João queria casar com Clara. Celina, que pouco passava dos dez anos, queria irmãos. 

Mas havia barreiras intransponíveis. Clara era quase vinte anos mais nova e sua subordinada na empresa de petróleo a qual dedicou sua vida.

João e Clara se desentenderam muitas vezes na vida, se reconciliaram muitas vezes, mas apenas como amigos. João nunca mais se relacionou com ninguém porque seu amor por Clara não lhe deixava em paz para isso. 

João esteve no casamento de Clara com Clélia, casal que sempre rendeu brincadeiras com duplas sertanejas.

Tudo isso já fazia 35 anos. Agora, o câncer corroía a resistência de João e sua próstata - e dali, outros órgãos internos. A decisão de se mudar para aquela casa de repouso foi de João, porque sua filha e seu neto, trabalhando muito, não podiam lhe dar a atenção necessária. “Se eu posso pagar, filha, e estar bem cuidado, podemos nos falar todos dias e vocês virão sempre me ver”, disse João. Todos os dias, por dez anos, Celina fazia uma videochamada com o pai. A cada dois dias, seu neto Pedro falava com ele.

Naquele domingo, Celina notou algo diferente e perguntou ao pai. “Filha, queria falar com Clara. Você pode pedir a ela que venha me ver?”, disse João. 

João e Clara estavam naqueles períodos de distanciamento. Ela, ainda casada com Clélia. Haviam decidido não ter filhos, mas Pedro costumava frequentar sua casa quase como se filho das duas fosse.

A visita de Clara aconteceu no domingo seguinte. 

João reconheceu, antes mesmo de vê seu perfume de jasmin impregnado da fumaça de automóvel. Aquele cheiro de óleo, que João nunca entendeu, era característico de Clara e uma das primeiras coisas que lhe fez se apaixonar por ela.

Clara chegou um pouco assustada. Mas logo o sorriso de João lhe desarmou. “Você me assustou, Jão”, disse, usando o apelido carinhoso.

Jão começou a falar que ela não tinha do que se preocupar mas ele queria disser algumas coisas antes de morrer - “pare de falar besteira, Jão”.

“Sabe, eu tenho 76 anos mas acho que ainda sou o mesmo”, começou a dizer João.

"Sou aquele que um dia se encantou pelo seu sorriso - um riso que ria inteiramente só com os olhos. Olhos que me diziam que eram diferentes de todos os outros olhos ali.Ainda sou o mesmo”, enfatizou o seu refrão.

"Um minuto de conversa que me faz rir, sem pretensão; em que falamos mal do presidente, defendemos a revolução, que queremos mudar o mundo, na qual nos defrontamos com o capitalismo. Eu ainda sou o mesmo, Clara”. 

Clara percebia seus olhos marejando. As primeiras lágrimas regavam o rosto de João.

“Você pode estar no meu quarto, na minha sala, no meu carro, mas eu vou sempre querer colocar você em um pontinho e protegê-la para que mal nenhum possa alcançar hoje, amanhã, depois.  Ainda sou o mesmo.  E ainda que você tenha mudado, vejo em ti essa força inexpugnável, braços fortes, pernas fortes, cabelos, mãos. Palavras fortes. Você sabe de sua força e a sua força é o outro lado de cada fraqueza”, os dois aos prantos. Pessoas ao lado olhavam um pouco assustadas sem entender o que acontecia.

"Ainda sou o mesmo.  Tenho um amor inventado com o qual não sei lidar sem ansiedade e preocupação. Amo-odeio tudo isso.  Sempre penso que a porta vai se manter fechada mas você a arrebenta com uma palavra apenas.  Tranco o cadeado e seus dedos o destravam.

Ainda sou o mesmo - e você não é, meu amor”, João se prepara para encaminhar para finalizar o que havia ensaiado.

“Não sei muito o que fazer. Quis você perto e quis você longe. Preciso de você aqui, quero você a milhas de distância. Quero você ao meu lado. Não quero mais. Ouvir sua voz. Não quero mais ouvir nada. Quero dizer que te amo. Digo que te odeio. Odeio esse coração que vai saltar do peito, essa respiração que acelera. Porque queria ser seu. Só seu. Mas quero ser livre. Morro esse ano e no ano passado”, nesse momento Clara suspendeu por instantes a respiração.

"Ainda sou o mesmo. Tenho medo de mim, como quando te conheci. Tenho medo de você. Amo você até o infinito. Não é mais por causa do sorriso. Amo você porque sou isso. Amo você porque ainda sou o mesmo. Sou esse amor.  Que se muda, mas permanece.Ainda sou o mesmo. Amo você porque ainda sou o mesmo e te amo o mesmo”.

Clara não segurava as lágrimas e os soluções. Os dois se abraçaram. Trocaram carícias. Beijaram-se como se não mais se vissem. Por um instante não havia Célia.

“Jão, volto na próxima semana”, disse Clara.

“Vou esperar sentir esse jarmin de novo”, respondeu.

Não houve tempo.

João foi para o infinito dois dias depois. 

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