Por Ricardo Gondim
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Há uma superexposição de religiosos na mídia, na política, nos esportes, no rol das celebridades; e com ela, uma banalização do divino.
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Há uma superexposição de religiosos na mídia, na política, nos esportes, no rol das celebridades; e com ela, uma banalização do divino.
Televangelistas alardeiam feitos cada vez mais espetaculares. O país se assusta com o discurso conservador de políticos que, apesar de estarem na mira do Supremo Tribunal Federal, insistem com pautas moralistas. Celebridades se convertem e ganham mais notoriedade. Jogadores de futebol gravam frases de efeito na camiseta e apontam para o céu na hora da vitória. Vez por outra um automóvel passa com a afirmação escrita na carroceria: Presente de Deus. Depois que o Todo Poderoso ganhou fama, alguns pedem: Menos deus, por favor! – o deus, na frase, deve vir em minúsculo. (Recado a ateus, agnósticos e des-igrejados: a confusão entre Deus e deus é tamanha que teólogos e sacerdotes também têm dificuldade em distinguir um do outro.
Também quero menos deus. Imploro até: menos demiurgos, por favor. Em certas expressões da divindade, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso, consideraria desnecessárias.
Não quero um deus técnico. Dietrich Bonhoeffer o chamou de ex-machina. Essa divindade se contenta com técnica, ritos, cerimônias. Basta recitar uma reza, aderir a um credo ou cumprir alguma liturgia e ele escancara portas e janelas para prosperar o crente. Por isso, manuais teológicos ou livros que ensinam os passos para agradá-lo, vendem bem. Como nenhum relacionamento depende de técnica, esse deus se parece mais com os ídolos primitivos que exigiam adulação para dispensar seu favor. Ele, portanto, é desnecessário em seu primitivismo.
Muito do pensamento ocidental vem das antigas concepções gregas, que entendiam o universo engrenado numa relação de causa e efeito. Deus, a causa primeira – o Motor Imóvel de Aristóteles – precisava ser tirado de sua indiferença através de sacrifícios, penitências e obediência. O fascínio atual por campanhas de oração, jejuns e doação de dinheiro, como meio de acessar o divino, tem a mesma lógica.
O desgaste da religião organizada é monumental. No Brasil, o segmento religioso que mais cresce desde a década de 1990 é o dos não-religiosos. Paradoxalmente, expressões da uma espiritualidade medieval, com práticas esotéricas, fervilham. Mega organizações florescem. Mais gente lota espaços onde intervenções sobrenaturais são o único recurso de reverter processos históricos perversos; se esse é o preço que deus cobra para aliviar o sofrimento das vítimas, ele não merece a atenção de ninguém.
Não quero um deus oligarca. Elites poderosas se organizam nome de ideais religiosos enquanto, no fundo, revelam apenas ambição de poder. Não consigo aceitar um deus que gera mandachuva soberbo. Não tolero conviver com uma espiritualidade que ajuda o sacerdote a aparecer em lista de bilionários. O estigma que pesa sobre o religioso, muitas vezes verdadeiro, é que a fé o torna cobiçoso, materialista e ganancioso. Se críticos da religião desdenham de discursos piedosos é porque duvidam da agenda, nem sempre cristalina, do clero. Millôr Fernandes acertou em cheio quando disse: Eu não dou dois centavos por um homem que lucra com os ideais que defende.
Antigos cristãos insistiram, no começo do movimento, que a vocação que vem de Deus capacita para o serviço e não para a dominação; para a doação de si e não para o lucro. Quem ousava tomar a cruz, tornava-se criado de todos, principalmente dos pobres. A Igreja não surgiu para disputar poder, mas para servir. Nos relatos mais antigos da fé, os primeiros cristãos foram tratados como a escória do mundo – escravos, exilados, pobres, marginalizados, nunca interessados na disputa política do poder.
Não quero um deus minucioso e controlador. Jesus falava de liberdade, de vida sem jugo. Mas veio o assédio do imperador de Roma e com ele, a necessidade de mostrar que o clero possue controle sobre a fé. O legado do Nazareno virou uma religião estatal. O legalismo se fortaleceu. [legalismo é obsessão por um sistema de regras que busca controlar todos os pormenores da vida]. Depois, na Idade Média, os concílios se arrastaram tediosamente por décadas. O desejo de conhecer até onde vai o controle de deus, fez teólogos perguntarem quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete e qual o valor a ser pago para abater alguns dias no purgatório. O legalismo resiste. Religiosos continuam a perder tempo, debatendo sobre tamanho do cabelo das mulheres, gravatas e necessidade das vestimentas clericais.
Se as grandes questões como justiça, paz entre as nações, sorte dos inocentes e a esperança dos perdidos não dominam as prioridades, outros debates serão irrelevantes. Diante de um mundo em que milhões sofrem com o desemprego, a África arqueia sob o peso da miséria e da Aids e a corrida armamentista consome riquezas inomináveis — não deixa de ser ridículo apequenar o debate sobre a intolerância divina com as minúcias do dia a dia.
Não quero um deus manhoso e instável. O deus tribal, carente de elogios, precisa morrer. Religião neurotiza sempre que procura forçar o seguidor a andar sob o peso da perfeição absoluta. Instituições, interessadas em gerar pavor de que a qualquer instante vem castigo do céu, adoecem mais do que curam. Concordo com o rabino Harold Kushner:
Acredito que a mensagem fundamental da religião não é a de que somos pecadores porque não somos perfeitos, mas a de que o desafio de ser humano é tão complexo, que Deus não perde tempo esperando de nós a perfeição. A religião vem para purificar-nos de nosso sentimento de desvalia e para assegurar-nos de que, quando tentamos ser bons, e não conseguimos ser tão bons quanto desejávamos ser, não perdemos o amor de Deus… A religião é a voz que diz: eu vou guiá-lo através desse campo minado das difíceis escolhas morais, compartilhando com você a percepção e a experiência das grandes almas do passado, e vou lhe oferecer o conforto e o perdão quando você estiver perturbado pelas escolhas dolorosas que fez”.
Quero menos deus. Anseio por uma espiritualidade em que Deus permeia a vida sem a manipulação dos cambistas, sem a euforia dos curandeiros e sem a intolerância dos fundamentalistas. Desejo mais Deus para que sua mensagem continue a inspirar novos Bachs e novos Hendels. E que Ele levante homens e mulheres, iguais a Martin Luther King e a Mandela, como profetas da justiça.
Quero menos deus. Todavia, desejo mais Deus para que igrejas, plantadas nos morros violentos do Rio de Janeiro e na periferia de São Paulo, espalhem solidariedade, paz e coexistência. Quero mais Deus para que os crentes aprendam a respeitar o próximo, sem distinguir gênero, orientação sexual ou cor da pele. Precisamos menos deus para que mais Deus nos leve a acreditar no amanhã.
Soli Deo Gloria
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