As coisas que aprendi nos discos - Apesar de você


Apesar de você foi lançada por Chico Buarque em 1970 em compacto simples, mas só veio a ser liberada para registro em LP no fim da década, gravada no disco de Chico em 1978.
Na minha história pessoal, faz par político com Cálice, canção sobre a qual já falei aqui.
As referências das letras são bastante óbvias, mesmo que o eu-poético do compositor queira travestir a crítica ao regime como uma querela romântica:
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
Essa canção trouxe um forte conteúdo ao meu discurso e ação social e política: nenhuma opressão é para sempre, nenhuma dominação é eterna. Todos os opressores cairão, todos os impérios serão depostos, todo poder sempre passará pelas mãos do povo.
Claro que há uma dose utópica nessas afirmações, mas quando lembramos que a música foi composta no momento mais duro de um regime militar que fatalmente chegou ao fim, podemos ter esperança que todo ditador terá, uma dia, que ver a manhã renascer e esbanjar poesia.

Essa canção é certamente uma das vozes que ecoa em meu discurso com mais força. Ouvi muito em minha infância, ouço muito ainda hoje. Ela ainda me fala ao coração e alimenta minhas forças e esperanças.
Pensei em retomar As coisas que aprendi nos discos hoje e com essa música ao perceber que a prefeita de Natal, Micarla de Sousa (PV), em meio à crise que assola sua gestão e à força das manifestações do Movimento #ForaMicarla, tem tomado cada vez mais atitudes que a aproximam do ditador sírio Al-Assad: intimidação por e-mail, ameaça armada, acompanhamento por assessores próximos das marchas #ForaMicarla, infiltração, colocação de drogas e camisinhas no pátio da Câmara Municipal ocupada. Quando debatemos com filiados ou assessores em redes sociais, percebemos o quanto o movimento incomoda e o quanto as reações oficiais são impensadas e desesperadas. As ações do grupo micarlista em defesa da prefeita estão beirando um desespero sem par.
Micarla assume uma postura anti-democrática, acusando os manifestantes de baderneiros. Não há diálogo nem negociação. Dois vereadores imbricados até as almas com a gestão são o presidente e o relator da CEI dos Aluguéis instalada para investigar suspeitas sobre locações da prefeitura. A situação é difícil. Mas, podemos estar certo,amanhã será outro dia.

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