As coisas que aprendi nos discos - Os saltimbancos


Cresci ao som de Os saltimbancos, versão de Chico Buarque do musical de Luiz Henriquez e Sérgio Bardotti.  Desse disco, fundamental em minha formação política, constado ser impossível destacar uma canção apenas para esta série.  Nesse caso, preciso me referir ao disco inteiro.
Esse musical é tão fundamental para mim que o filme mais importante da minha infância, também repleto de mensagens políticas, é Os saltimbancos Trapalhões. Há um trecho do filme que inclusive já utilizei para explicar alguns conceitos acerca de ideologia em sala de aula.  Os saltimbancos vão conversar com o Barão para pedir um aumento, mas o Barão os convence que está em situação difícil.  Ao fim do papo, os quatro fazem uma vaquinha para ajudar ao circo. (No trecho de dez minutos abaixo, a cena referida começa aos 7’28″)

Sempre me perguntei como a censura liberou um disco (infantil!) como Os saltimbancos.  As críticas são muito claras.  Algumas se destacam.  O Cachorro é uma representação nítida dos milicos:  Lealdade eterna/ Não fazer baderna/ Entrar na caserna/ (…) Fidelidade à minha farda/Sempre na guarda do seu portão/Fidelidade à minha fome/Sempre mordomo e cada vez mais cão. Chico fez uma geração de crianças brasileiras chamar os militares de cachorros obedientes!  Quando estive em idade de alistamento militar, prometi que se tivesse de servir cantaria esta música todos os dias.
O Jumento representa uma força de trabalho subalterna e explorada.  Mas é o líder de um grupo que se rebela contra o poder imposto pelos Barões.  É o símbolo de uma possível revolução popular.  Eu sempre quis ser o Jumento.  Aliás, o grande adversário dos Saltimbancos é o capitalismo representado pelos seus patrões, os barões.
Quando a Galinha é apresentada, é dela que sai uma clara mensagem contra a Ditadura agonizante no país: Pois um bico a mais/ Só faz mais feliz/ A grande gaiola do meu país. O Brasil é uma grande gaiola.
A Gata é a única efetiva artista do grupo.  Por cantar, ela teve problemas seríssimos, como ser posta para fora de casa.  Parece com alguma coisa?  Artistas sendo perseguidos e exilados?  Coincidência?  Tentavam convencer os artistas a ficar em casa e não tomar vento, mas isso é impossível.  Afinal, Nós gatos já nascemos pobres/ Porém já nascemos livres/ Senhor, senhora, senhorio/ Felino, não reconhecerás. A arte é livre.  Sempre, mesmo sob uma ditadura.
Há cantos contra a cidade e a organização social repressora daqueles dias (Mas não, mas não/ O sonho é meu e eu sonho que/Deve ter alamedas verdes/A cidade dos meus amores/ E, quem dera, os moradores/ E o prefeito e os varredores/ Fossem somente crianças/(…)E os pintores e os vendedores/As senhoras e os senhores/E os guardas e os inspetores/Fossem somente crianças).  Há o lirismo de Minha canção. Há o confronto em A pousada do bom barão (a referência à expressão sentar a pua, nessa canção, é sobre os militares?), A Batalha e Esconde esconde.  Mas certamente os recados mais claros estão em Bicharia Todos juntos.
Bicharia

Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
O animal é tão bacana
Mas também não é nenhum banana.
Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
Quando a porca torce o rabo
Pode ser o diabo
E ora vejam só.
Au, au, au. Cocorocó.
Era uma vez
(E é ainda)
certo país
(E é ainda)
Onde os animais
Eram tratados como bestas
(São ainda, são ainda)
Tinha um barão
(Tem ainda)
Espertalhão
(Tem ainda)
Nunca trabalhava
E então achava a vida linda
(E acha ainda, e acha ainda)
Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
O animal é paciente
Mas também não é nenhum demente.
Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
Quando o homem exagera
Bicho vira fera
E ora vejam só.
Au, au, au. Cocorocó.
Puxa, jumento
(Só puxava)
Choca galinha
(Só chocava)
Rápido, cachorro
Guarda a casa, corre e volta
(Só corria, só voltava).
Mas chega um dia
(Chega um dia)
Que o bicho chia
(Bicho chia)
Bota pra quebrar
E eu quero ver quem paga o pato
Pois vai ser um saco de gatos
Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
O animal é tão bacana
Mas também não é nenhum banana.
Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
Quando a porca torce o rabo
Pode ser o diabo
E ora vejam só.
Au, au, au. Cocorocó.
Au, au, au. Cocorocó.
Au, au, au. Cocorocó.
Todos juntos
(letra embutida)

Havia uma esperança aí.
O animal é paciente, mas também não é nenhum demente/ (…) Quando o homem exagera/ Bicho vira fera/ E ora vejam só/ (…) Mas chega um dia/(Chega um dia)/Que o bicho chia/(Bicho chia)/Bota pra quebrar/E eu quero ver quem paga o pato/Pois vai ser um saco de gatos.
Em Todos juntos a esperança é que finalmente o povo descubra que sozinho, isolado, ninguém pode coisa alguma, mas todos juntos somos fortes.  O valente dos valentes ainda vai te respeitar!
Talvez eu e a geração que cresceu com os Saltimbancos tenha sido constantemente desafiada a não desistir nunca dessa luta por justiça, por banir a exploração dos barões, a escravidão de uma gaiola em que um bico a mais não faz diferença.  Não sei, no entanto, se todos nós ainda cremos na força dessa utopia ou se fomos convencidos pela ideologia do barão Bertold.

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