Breves palavras sobre as mulheres e a Bíblia

A partir de um diálogo travado na noite de ontem pelo twitter, fiquei pensando nesta manhã no papel da mulher na Bíblia.  Nada mais adequado para um dia como hoje, em que mulheres de Natal estarão promovendo a sua Marcha das Vadias.
Em que pese o fato de que a Bíblia foi escrita em um contexto de total androcentrismo, no qual, muitas vezes, a mulher era tomada como um ser humano de segunda categoria, é importante destacar que apontam, aqui e ali, espaços de valorização e empoderamento da mulher mais ou menos definidos.
Evidente que qualquer exegese mais coerente dos textos bíblicos necessita tomar esses aspectos em consideração.  A tomada literal de posição, com absolutização da posição de extrema valorização do homem, produz distorções inaceitáveis.
Também fique claro que nos limites de um post não me proponho a ser extensivo na defesa de que há, na Bíblia, a valorização do papel da mulher também.
Juízes 4, no Antigo Testamento, relata uma batalha no tempo em que Israel era comandado por uma mulher, a juíza Débora.  Além disso, ali, como lição aos homens, uma outra mulher, Jael, é responsável pela maior vitória do povo: a morte do comandante do exército inimigo, Sísera (Jz. 4. 4, 9, 17 - 21).
Jesus trouxe uma nova perspectiva no relacionamento com as mulheres.  Ainda que os textos dos evangelhos tenham sido escritos de um ponto de vista bastante masculinizado, podemos perceber, no círculo íntimo de Jesus as mulheres como discípulas atentas.  Mulheres e crianças, mesmo não sendo contadas oficialmente, estavam nas multidões aprendendo com Ele - em uma cultura em que as mulheres não sentavam para aprender.  Em Lucas 10, entre Marta, que se preocupa em servir como era de se esperar a uma mulher daquele tempo, e Maria, que quer aprender como era direito só dos homens fazer, Jesus prefere Maria - a que escolheu a melhor parte, aprender.
O fóco do discurso da equidade no Novo Testamento é o texto de Gálatas 3. 28Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.  Além disso, se destaca o fato de que as primeiras testemunhas da Ressurreição foram mulheres lideradas por Madalena (Mateus 28, Marcos 16, Lucas 24 e João 20).  
Madalena e Pedro disputaram a liderança da igreja primitiva.  Por fim, a supremacia de Pedro terminou por ir castrando os espaços das mulheres pouco a pouco.  Tanto que apesar de todos os relatos atribuírem a Madalena e às mulheres a primazia como testemunhas da Ressurreição, Paulo as ignora solenemente: E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.  E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos (1 Coríntios 15. 4 - 7).
Apesar de todas essas tentativas de esvaziar a figura feminina na liderança da igreja que nascia, alguns indícios apontam que isso não foi totalmente eficaz.  Uma das principais lideranças daquela igreja era Priscila (Prisca) que, junto com seu marido Áquila, era amiga de Paulo.  O casal é citado diversas vezes no Novo Testamento e em apenas duas dessas referências o nome do marido antecede o nome de Priscila (Atos 18, Romanos 16. 3, 1 Coríntios 16. 19, 2 Timóteo 4. 19).  A importância do nome de Priscila anteceder o do marido fica evidente quando sabemos que isso incomodou de tal modo os copistas da antiguidade que, em diversos manuscritos os textos foram alterados para que o nome de Áquila viesse primeiro.
Por fim, vale destacar o texto de Romanos 16.  Além de Priscila, outras duas mulheres com posição de liderança na igreja são citadas.  A primeira é Febe, a quem Paulo está recomendando à igreja.  Aqui o machismo está na tradução.  A expressão utilizada para se referir a Febe (diakonos) sempre que aparece associada a nome de homem é traduzida como ministro - equivalente a pastor no mundo protestante ou padre no mundo católico.  Somente aqui, ao se referir a uma mulher, os tradutores forçam a mão e dizem coisas como que serve à.  Efetivamente Febe era pastora da igreja de Cencréia.  Outra mulher em função de comando aparece no versículo 7.  É Júnia, chamada de apóstola por Paulo.
A situação era tão incomoda no universo androcêntrico da religião cristã que, por muito tempo, foram tentadas ginásticas na tradução ou na exegese para que se apagassem os relevantes papéis de liderança que as mulheres exerceram nos tempos bíblicos.  Uma dessas tentativas, por exemplo, era afirmar que Júnia era nome de homem, não de mulher (!).
As mulheres foram subjugadas ao longo do tempo, no discurso e na prática cristã.  Espero que possamos ver ainda com mais intensidade sua libertação no passar dos anos.  Pelo bem de Alice, minha filha.
  

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