Fascismo: a serpente rompe a casca do ovo e põe a cabeça para fora

A Europa não prestou mesmo atenção a  uma de suas melhores cabeças do século XX. Adorno dizia que Hitler determinou um novo imperativo categórico: “pensar e agir para que Auschwitz nunca mais acontecesse”.
Um micro Auschwitz  acaba de acontecer na Noruega. Aparentemente o autor agiu sozinho, mas  parece esperto  o suficiente para saber que seu gesto pode impulsionar e animar seus iguais, articulados e organizados por toda a  Europa. Espero ser um mau profeta ao prever que virá mais.
Pensar e agir para que Auschwitz nunca mais acontecesse parece ter sido tudo o que a Europa não fez após a guerra. Xenofobia,  preconceito e discriminação grassam lá por toda parte. 
Governos adotam posturas rígidas contra imigrantes e emitem, com isto, sinais alentadores para o pequeno Hitler meio adormecido que repousa na consciência de muitos europeus.
Este pequeno Hitler também anda por aqui, e foi meio que sacudido na última campanha eleitoral por irresponsáveis que não tiveram escrúpulos de vender a alma para o diabo para ganhar a eleição, apelando grosseiramente para a intolerância e o preconceito. 
Perderam a alma e não ganharam a eleição. 
Este pequeno arranhão na casca do ovo foi  suficiente para gerar atos de vandalismo contra minorias e  ataques a gays e  nordestinos, nas ruas e nas redes sociais. Ou será apenas impressão que estes incidentes aumentaram após as eleições do ano passado?
Enfim, o que está parecendo é que a serpente rompeu a casca e pôs a cabeça para fora.
A frase de Adorno está em modo negativo. Não diz o que deve ser feito, diz o que devemos evitar. Não é difícil formulá-la em  modo positivo. Fatos semelhantes a Auschwitz, em qualquer dimensão, nunca mais aconteceriam se no planos político, social, econômico, cultural e educacional a Europa se dedicasse, após a hecatombe da II Guerra, a shoah e a morte de milhões de inocentes,  a construir na experiência o que o  seu  filósofo maior ensinou: a construção do conceito universal de homem.   
“Ao entrar o médico na alcova, como Kant não via já quase nada, eu lhe disse que era o médico que havia chegado. Kant se levantou, estendeu a mão, e disse algo sobre ‘postos’, pronunciando esta palavra repetidas vezes em tom obsessivo. O médico, crendo que era uma pura fantasia ou delírio do enfermo, o aquietou dizendo que no posto estava tudo bem. Kant então diz: ‘muitos postos, postos de doença’, e acrescentou em seguida: ‘muita bondade’ e ‘gratidão’ (...) Eu me dei conta do que ele queria dizer. Queria dizer que seu médico lhe dava uma prova de sua bondade ao visitar-lhe, apesar dos muitos e muitos postos de trabalho que ocupava. Disse isto ao médico. ‘Perfeitamente’, comentou Kant, que seguia de pé, com muita dificuldade. O médico pediu que sentasse. O enfermo não se decidia. Eu conhecia demasiado bem seu modo de pensar para que pudesse abrigar a menor dúvida acerca da verdadeira causa de sua vacilação. Falei com o médico e lhe disse que Kant, cuja finura e correção de modos não o abandonavam nem em seus últimos momentos, somente se sentaria quando ele, o visitante,  sentasse também. O médico, que parecia pôr em dúvida a razão de minhas palavras, convenceu-se dela, e quase lhe saíram lágrimas quando ouviu o enfermo dizer, apelando a suas últimas forças, com a energia que pode:  ‘o sentimento de humanidade não me abandonou ainda’. (Relato de Wasianski, criado de Kant, reproduzido por Ernst Cassirer em “Kant, Vida e Doutrina”, Fondo de Cultura Económica. Traduzi do espanhol o trecho)

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