As coisas que aprendi nos discos - Madalena

Madalena
Akundum







Fui passear na roça
Encontrei Madalena
Sentada numa pedra
Comendo farinha seca
Olhando a produção agrícola
E a pecuária
Madalena chorava
Sua mãe consolava
Dizendo assim
Pobre não tem valor
Pobre é sofredor
E quem ajuda é o Senhor do Bonfim
Entra em beco, sai em beco
Há um recurso, Madalena
Entra em beco, sai em beco
Há uma santa com seu nome
Entra em beco, sai em beco
Vai na próxima capela
Acende uma vela
Pra não passar fome
A gravação de Madalena é de 1991.  Eu tinha doze anos.  Já havia lido sobre capitalismo.  Já havia lido sobre violência e exploração no campo - sobre Reforma Agrária.  Livro marcante sobre o tema, para mim, tinha sido de Frei Betto - acho que OSPB: Introdução à política brasileira.  Mas tenho a impressão que nenhum livro ou leitura provocaram o impacto dessa canção.
Ela tocava nas rádios comerciais.  Parecia uma manifestação comum de axé e música baiana.  Talvez pouca gente estivesse a fim de, efetivamente, refletir a respeito da música.  Pelo menos entre os meus colegas pré-adolescentes.  
Madalena foi certamente a primeira vez que me permitir fazer uma ligação direta entre o uso ideológico do discurso religioso como estruturante de uma relação de exploração que, portanto, não poderia jamais ser questionada.  

Madalena é alguém a ponto de se indignar com a sua fome e a injustiça a que é submetida.  É a situação ainda muito real do campo brasileiro.  Ao lado de ilhas de prosperidade e de produção industrial, a miséria.  Ao lado do latifúndio, do agronegócio ainda tão poderoso, a força de trabalho da agricultura familiar sendo esmagada e destruída.  E tudo a ser justificado pelo discurso político-ideológico.
Por isso, o narrador encontra Madalena em situação de miséria, observando a opulência do agronegócio, sentada numa pedra, comendo farinha seca.
Como viver com isso?  Somente com a ideologia:  Pobre não tem valor/Pobre é sofredor/E quem ajuda é o Senhor do Bonfim.  Estamos onde estamos porque não valemos nada, estamos aqui para sofrer. Precisamos acreditar nisso para não nos indignarmos e tomarmos a terra ao lado que produz para uns poucos.  É preciso lembrar do Senhor que assim nos fez.  Não podemos nos levantar contra Ele, mas devemos nos render a esperar o único socorro a nos valer - o do Senhor.  Não adianta fazer movimento.  Não adianta chorar.  Não adianta revolta.  Não adianta luta.  Não adianta festa.  Temos que aceitar o que somos e como não valemos nada.  
A única chance de não passar mais fome, de não se levantar contra a injustiça é ser consolado por esse discurso na mãe.  Sofredora, sem valor, mas, Madalena, há uma santa com seu nome.  Por você mesma, você não é nem vale nada.  Mas há uma santa com seu nome. Você tem seu valor e sua honra no campo da religião.  Uma santa tem seu nome e pode ajudar você a não mais passar fome.  Somente o Senhor do Bonfim e ela.  Não olhe mais o latifúndio do vizinho.  Não alimente mais essa sua inveja pecaminosa.  Engula o choro e não fortaleça em você sua indignação e revolta.  Corra pelos becos em busca de um recurso: vai na próxima capela e acende uma vela pra não passar fome.
Tem outros índices discursivos a se considerar nessa música.
Com a concentração fundiária e o desenvolvimento do agronegócio no campo brasileiro, o homem do campo é expulso para a cidade - sem perspectiva.  Dentro desse contexto, há elementos que não podem ser desconsiderados.  Na tradição cristã, Madalena é a santa que foi prostituta e, depois de liberta por Jesus, passou a acompanhá-lo (Madalena vale um post só para ela).  Há uma santa que pode ajudar nossa Madalena: sua homônima.  
Diante disso, vale lembrar outros dois elementos: em alguns contextos as prostitutas também são chamadas de mulher de recursos.  A vinculação da santa prostituta e a nossa Madalena, como mulher de recursos que entra em beco e sai em beco, aponta, também, para uma vítima do êxodo rural que, na cidade, se torna mulher de recursos, prostituta como a homônima, para não passar fome.
Efetivamente, se há uma coisa que essa canção me ensinou com clareza foi a respeito da violência e exploração no campo - e suas consequências na cidade - e a nossa necessidade de nos indignarmos com isso.  Não apenas as vítimas - que precisam ser libertas das amarras de discursos ideológicos como o religioso denunciado pela canção -, mas cada um de nós que pode fazer mais na luta por mais justiça no campo, na cidade e uma reforma agrária eficaz.  Ainda mais em um momento em que a gente descobre que o governo investe cada vez mais na reforma e na justiça - e, sem reforma, a luta do campo está fazendo todos os dias seus mártires, suas Madalenas.

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