Hereges devem arder no fogo do inferno


 Do Blog Pequenos Dramas de um Escritor Diletante:
“As pessoas que me dizem que eu vou para o inferno e que elas vão para o céu de certa forma me deixam feliz por não estarmos indo para o mesmo lugar.” Martin Terman
Eu disse recentemente no twitter que boatos e beatos têm a mesma raiz pretensiosa: tomar conta da vida dos outros. As manifestações de espanto e uma ou outra reclamação já fazem parte do meu mister. Foi-se o tempo em que sentia culpa e a complicada sensação de incompreensão pairava como um fantasminha camarada na minha jornada. Cansei de tentar ser compreendido por quem tem medo de compreender e, compreendendo, ser forçado a tomar uma atitude para além, para longe, para um pulo no desfiladeiro do egoísmo para a liberdade do próximo.
Celebrei ontem e hoje a atitude carinhosa de uma vizinha no prédio novo para onde nos mudamos. Ela, solidária ao nosso cansaço e desespero com a bagunça dos móveis e 114 caixas (sim, eu contei), nos trouxe café fresco e bolachas. E nos animou, dizendo que tudo ia acabar bem e aquelas coisas que gentis vizinhas sexagenárias dizem. Até aí, tudo bem. O problema começou quando contei que a vizinha é espírita. E tomou proporções enormes quando disse que ela trouxe um pouco do reino de Deus para nós naquele momento.

De perguntas vagas a conselhos sobre ir devagar, de gente me pedindo pra definir reino de Deus a gente me pedindo cuidado para “minha revolta neoreformista não sobressair à graça” (Entendeu? Não? Nem eu), de mensagens dizendo que concordam com tudo o que falo, mas tenho que ter cuidado para não ofender a mensagens tentando me ensinar a diferença entre atos de amor e reino de Deus. De tudo isso um pouco eu li durante a manhã. E justo porque comentei da alegria de receber um café fresquinho num momento tumultuado de mudança de casa. Ok, também comentei que outra senhora, dessa vez evangélica veterotestamentária, apenas perguntou se tínhamos cachorro e se nosso filho ainda chorava como bebê (e eu com o bebê no colo).
Tentei argumentar, até citei Søren Kierkegard dizendo que “a questão é simples. A Bíblia é muito fácil de entender. Mas nós cristãos somos um bando de vigaristas trapaceiros”. Também lembrei que o próprio Søren, protestante de primeira grandeza, disse:
Aqui jaz o verdadeiro lugar da erudição cristã. A erudição cristã é a prodigiosa invenção da igreja para defender-se da Bíblia; para assegurar que continuemos sendo bons cristãos sem que a Bíblia chegue perto demais. Ah, erudição sem preço! O que seria de nós sem você? Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo. De fato, já é coisa terrível estar sozinho com o Novo Testamento.
Mas que nada, se digo alto que a teologia evangélica, além de pecado, produz seres imbecis, repetidores de visões políticas e sociais de outros interesses que não cristãos sei que vou receber pedradas dos evangélicos paulinos. Se digo que me confesso agnóstico, sabedor que não posso dar provas cabais da existência de Deus (mas mesmo assim me mantenho crente, pois ter o tète-a-tète com Deus foi coisa minha, não de ninguém mais e eu sei em quem tenho crido), sinto um leve cheiro de butano invadir o lugar e ouço caixinhas nervosas preparadas para riscar palitinhos flamejantes. Se me reconcilio com católicos e digo que não entendo o mistério dos “santos” a que a Bíblia se refere, um forte zunido de passos em minha direção me assusta um pouco.
Ainda me doem as orelhas as ofensas que ouço por dizer que há vários erros de tradução e interpretação no texto canônico e que cada frase deve ser estudada e entendida por completo e não usada literalmente. Meu pescoço ainda tem as marcas da corda do enforcamento (do qual escapei por pouco) ao defender os direitos civis de homossexuais, tais como casamento e adoção de crianças). Nem reclamo mais das bolhas nas mãos, já que é esporte meu colocá-las no fogo por amigos e irmãos que ousam pensar e viver diferente do que prescreve a frígida norma. Cada ferida dessas é santa, é bem-vinda e me impulsiona na certeza de estar no caminho certo.
Agora, me vejo num beco sem saída. Querem que eu renegue a alegria que uma gentil vizinha, sexagenária e espírita, me proporcionou apenas porque, na teologia evangélica, ela está condenada, assim como nos tempos do Rabi, estavam condenados pecadores, cobradores de impostos, samaritanos e prostitutas. Fazer o quê? Eu não renego (além de tudo, é uma delícia o café da Dona Maria). Mas estão certo os que agora se afastam com medo da fogueira que cresce à minha volta. Afinal, dizem em sua epistemologia que os hereges devem arder no fogo do inferno.

Comentários