Minha vida é música

Já escrevi algumas coisas sobre minha vida, inclusive minha caminhada teológica.
Tornei-me evangélico em setembro de 1996.  No próximo dia 8, faz 15 anos.  Minha conversão foi numa igreja super-conservadora, mas que valorizava bastante a reflexão teológica.
O conservadorismo se manifestava em coisas simples - como a proibição de palmas no culto (!) ou a necessidade de se ir ao púlpito de terno.  Mas era um conservadorismo político intenso.

Eu tinha uma formação até então de esquerda, ainda que não tivesse uma substância ou teoria de esquerda muito bem definida.  O certo é que eu me declarava de esquerda - ou mesmo comunista - desde a pré-adolescência.  Ao me converter, vi um tanto dessa minha postura ser silenciada pelo ambiente em que eu estava.  Além disso, por falta de conhecimento ou experiência naquela esfera discursiva, não percebi logo de cara que tudo aquilo que me silenciava estava em linha com os encaminhamentos políticos e ideológicos que haviam naquela comunidade - e no mundo evangélico em geral.
Foi nesse contexto que, atendendo aquilo que identifiquei como vocação, primeiro fui aluno de um curso de nível médio e depois de um curso de bacharelado de teologia em minha igreja.
Na verdade, foi nesse período que comecei a sofrer os impactos do pensamento conservador da igreja em minha própria vida.  Já havia uma resistência pontual a mim na comunidade, cujos motivos não consigo definir com precisão, mas o meu pastor à época enfrentava tudo pela crença que depositava em mim.
O pensamento conservador daquela comunidade perpassava questões de sexualidade, política, ideologia, teologia e, pasme, até mesmo música.  Música secular - do mundo - era proibida a nós.  Pecado.  Coisa do mundo.  Nas eleições, usar bottom com nomes ou números de candidatos à esquerda gerava polêmica.
Minha caminhada de volta a uma maior clareza do pensamento de esquerda começou quando fui para o seminário, em 2001.  Ali, comecei a encontrar alguns questionamentos que já faziam sentido para mim mas que eu não tinha coragem de assumir.  Especialmente no que se referia às noções mais esquisitas sobre a Bíblia e sua interpretação que eram e são ensinadas às igrejas ainda hoje.
A primeira grande mudança que o seminário provocou em mim foi me fazer perceber o quão sem sentido era uma teologia sistemática - ou dogmática -, se comparada à teologia bíblica.  A Bíblia era maior que a sistemática.
A segunda grande mudança se deu quando investiguei para um trabalho exegético o Cântico de Maria (Lc. 1. 46 - 56).  Ali reencontrei minha esquerda, meu espírito revolucionário que o ambiente religioso tinha sufocado até ali: Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes.  Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos.  Esse era um Deus a quem valia a pena servir e em quem se podia crer sem medo de se fazer injustiça.  Um Deus que lutava contra a injustiça.
Foi o estudo teológico quem me apontou os caminhos das disputas ideológicas nos tempos bíblicos manifestas na composição de textos (e, também, das teologias) no meio do povo de Deus (judeus e cristão).  Tudo isso ainda me é fundamental até hoje para elaborar qualquer reflexão bíblica.  Só por isso admirei mais ainda personagens como Elias, me encantei por Jonas, Jó e Rute (os representantes do excluídos de Israel), por exemplo.
Mas a mais importante descoberta foi o Deus da revolução.  E a partir dele, em busca de algumas respostas, cheguei a Richard Shaull (1919-2002).  Shaull se tornou meu teólogo de referência.  Sua ação pessoal coerente com o que pregava e com o que produzia teologicamente me impactaram profundamente.  Shaull foi o introdutor da obra de Karl Barth no Brasil.  Em Campinas, no Seminário Presbiteriano, influenciou uma geração cujo nome de maior destaque veio a ser Rubem Alves.
Shaull foi um precursor da teologia da libertação.  Sua teologia da Revolução terminou por deixar seu espaço no mundo presbiteriano brasileiro, especialmente depois do Golpe de 1964, insustentável.  Foi convidado a não retornar ao país após um ano de descanso sabático nos Estados Unidos.
Shaull é um personagem encantador.  Fez, entre outras coisas, grupo de estudantes de teologia ir morar dentro de uma favela.  Não era pesquisa.  Era encarnação.  Coerência.
Esse processo me fez mais crítico e mais próximo à esquerda.  Até a MPB e o rock eu trouxe de volta à minha vida.  Eles estavam a partir dali na minha reflexão teológica.
Mas ainda havia a sexualidade e o sexo.
Tabus no conservadorismo de minha igreja e no conservadorismo da minha cabeça.  O sexo me fez sair do seminário, em 2002.  Não sem antes participar - e celebrar - a vitória de Lula na eleição para presidente.  Lá em Fortaleza.
Quando eu retornei a Natal, antes mesmo de começar a minha vida acadêmica no mestrado, me tornei blogueiro.  E minha reflexão sobre ideias revolucionárias - até sobre o anarquismo - foi ficando mais clara e mais pública em meus blogs e nos textos que produzia para o Jornal União, que editava à época.
Meus textos eram ácidos com a liderança de minha igreja - até que eu me envolvi em uma disputa de poder com o pastor da igreja e, pela segunda vez na vida, fui forçado a ficar em silêncio no ambiente eclesiástico.  Foi meu segundo processo disciplinar.  Dessa vez, o tabu que eu enfrentei foi político-ideológico - não mais sexual.  Até porque minha própria concepção sobre sexualidade já estava sendo aos poucos transformada.
A minha teofania principal se deu no ano de 2004.  Fui para o encontro da Fraternidade Teológica Latino-Americana em Paripueira (AL).  Pela primeira vez.  A consulta da FTL sempre terminava com um forró.  E ali, dançando forró com minha amiga Gidália Santanna, ao som de Espumas ao vento, senti fortemente a presença de um Deus novo e desconhecido - até então para mim.  Um Deus que valorizava minhas posições político-ideológicas, teológicas e, mais que tudo, tinha me feito nordestino, cujo hino era um forró ao som da sanfona, da zabumba, do triângulo.  Aquele momento mudou para sempre a minha vida.  Em 1996, uma canção do compositor evangélico natalense, Roberto Luna, me fez cristão evangélico, em 2003 Espumas ao vento fez cumprir em mim a palavra de Jesus e eu me tornei verdadeiramente livre.
A partir dali só fazia sentido uma fé leve para mim.  É claro que não tirei minhas roupas pesadas automaticamente.  As vestes mais difíceis ainda estão sendo desvestidas.  Algumas, eu fui tirando nos últimos anos.  Minha chegada à Igreja Batista Viva foi parte disso - e parte fundamental para que eu rasgasse algumas das últimas roupas que ainda me amarravam.
Não era mais possível para mim vivenciar uma fé conservadora.  No que se refere à política, à ideologia, ao sexo, à sexualidade, à vida.  Foi em 2005, ano que cheguei à Igreja Batista Viva, que eu me tornei filiado a um partido político pela primeira vez na vida.
Na Igreja Batista Viva a melhor coisa que aprendi foi a viver uma fé leve - sem sobressaltos, sem moralismos, com bastante graça e reflexão. Plural, diversa, colorida.
Tirar essas roupas e por novas roupas de salvação - para além do espírito religioso de um ethos conservador evangélico - me faz ter algumas convicções hoje bem distintas das que tinha há quinze anos.  Fundamental para mim é Jesus.  Sua vida.  Seu sacrifício.  Sua ressurreição.  Nunca vi, na verdade, Jesus e o que Ele é e fez serem fundamentais nos ambientes conservadores em que andei na vida.  A teologia, a correta interpretação da Bíblia, a disciplina das regras eclesiásticas e os sermões corretos e bem estruturados faziam o núcleo da fé comunitária da igreja.  Não Jesus.
Hoje eu vejo Jesus com outros olhos.  Os olhos de quem se viu miserável pecador e foi acolhido.  Por isso eu vejo Alguém que, acima de tudo, acolhe.  Tenho certeza, por exemplo, que Jesus anda hoje com os travestis e prostitutas da avenida Roberto Freire, em Natal, mas não anda com líderes evangélicos como Silas Malafaia.  E não sei como meus irmãos tantas vezes não conseguem ver que é isso que diz a Bíblia de Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus (Mt 21. 31).
Vejo na Bíblia um Jesus que condenava a falta de compaixão e misericórdia dos líderes religiosos e que andava com a escória da sociedade.  Vejo em meu mundo de hoje um monte de líderes religiosos sem compaixão e misericórdia (e com nenhuma noção do que significa justiça), fazendo muitos crerem em nome de Jesus que, por exemplo, homens e mulheres marginalizados por sua orientação sexual - cujas vidas estão sempre sob constante risco - não merecem ter seus direitos preservados.  Pior: há daqueles que são capazes de afirmar que não há uma coisa chamada homofobia no Brasil.  Uma coisa meio que sem nome - com as vítimas da qual, certamente, Jesus se solidariza.
Minha vida, experiência com Deus, com a igreja, com a teologia passa hoje de maneira muito intensa pela leveza da canção.  A música é minha forma predileta de reflexão bíblico-teológica.  Os desafios intelectuais, sociais, políticos que me lançam à face tantas músicas me conduzem a discutí-las e a repensá-las de um ponto de vista bíblico.  A música me faz mais intenso, mais coerente, mais livre.  Mais cristão.
E nessa leveza da música tenho cada dia mais certeza que meu posicionamento político-ideológico depende primordialmente da minha compreensão sobre Deus e a Bíblia.  Meu posicionamento político, social depende diretamente da minha experiência, vivência [com a sociedade através de Deus, ou de Deus através da sociedade] e reflexão bíblico-teológica.  Por isso, ainda hoje, Richard Shaull - o iniciador de tudo isso em minha vida, no nível do conceito - é referência no que faço.

Minha teologia, minha pregação, minha fé, minha luta, minha ideologia, meu posicionamento é música.

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