O dia em que o repórter intermediou a libertação de 54 mulheres


Por Anderson Barbosa

A matéria não ficaria completa se o repórter que assina esta matéria não contasse como os presos resolveram, depois de 24 horas de confinamento, deixar que 54 mulheres saíssem de Alcaçuz sem que houvesse confronto com a polícia. Depois de 24 horas sem luz, água e comida, elas viveram uma experiência singular, algo que nunca havia acontecido na história deste estado. E o desfecho do que ocorreu na manhã de ontem na maior penitenciária do Rio Grande do Norte merece mesmo ser narrado com detalhes. Pois em meio a tantos disparates surpreendentes, há um detalhe bastante corriqueiro, um absurdo comum dentro de qualquer unidade prisional deste país. Alcaçuz não é diferente. Lá também tem telefone celular.

Faz muito tempo que o meu telefone deixou de ser um objeto privativo. O número 9124-4525 muita gente conhece. Parece farinha de feira, todo mundo pega. E os presos de Alcaçuz também já se apoderaram dele. Tenho consciência disso. Como jornalista, e principalmente como repórter policial, já estou acostumado a receber tudo que é tipo de telefonema.

A maioria das chamadas que atendo só tratam de desgraça. Morreu um ali, mataram outro acolá. Assaltaram, estupraram, esfolaram. É o dia todo e todo dia a mesma coisa. Notícia ruim não falta. Receber convite pra uma boca livre, que é bom, nunca acontece. Repórter de polícia nunca é chamado pra nada mesmo. A não ser, é claro, pra encontro de cadáver. Quem trabalha na área sabe disso.

Portanto, por já estar acostumado, atendo tudo que é ligação sem qualquer frescura. Até as chamada ocultas são bem vindas. Não há discriminação. Pode ligar. Até no domingo, depois do Fantástico, atendo todas. O preso João Maria da Silva sabe disso. Ontem foi o primeiro a ligar. Assim que o dia amanheceu foi dele a primeira voz que ouvi.

João Maria não é um apenado qualquer. Condenado por tráfico de drogas, ele tornou-se hospede de Alcaçuz há oito meses. Esta é sua segunda estadia. Tinha sido posto em liberdade no ano passado para cumprir o regime semiaberto, mas como largou mão do benefício, foi preso novamente. João Maria agora é famoso. João Maria liderou a rebelião em Alcaçuz. João Maria negociou a saída das 54 mulheres que dormiram no presídio. João Maria é interno do pavilhão 1. Lá estão alguns dos criminosos mais perigosos do estado. É naquela ala onde as leis de Alcaçuz são discutidas. É no pavilhão 1 onde come e dorme a célula do PCC no Rio Grande do Norte. João Maria é do PCC. “Aqui todo mundo é irmão. Todo mundo é do PCC”, afirmou ele, todo gabola.

Quando o telefone tocou, eu não sabia quem era do outro lado da linha. Porém, ao final desta história, vou revelar que duas coisas ficaram gravadas depois desta ligação surpresa. Uma delas vai desaparecer. Não tenho dúvida que vai. A outra, tenho certeza que ninguém apagará.

João Maria: Aqui a situação tá feia. Vai ficar pior se a governadora não vier negociar com nós. Queremos Rosalba e o corregedor. Avisa pro diretor (major Marco Lisboa) que tem gente aqui que vai morrer. Se não atenderem nossas reivindicações, vamos mandar um aviso pra eles verem que aqui ninguém tá de brincadeira.

Repórter: Quem vai morrer? Vocês vão matar quem? Que papo é esse? Vocês vão matar as próprias mulheres de vocês?

João Maria: Não. Aqui ninguém vai machucar a mulher de ninguém. Mas tem preso aqui que merece morrer.

Repórter: Essas mulheres estão aí fazendo o que? O que vocês querem pra soltá-las?

João Maria: Elas estão aqui porque querem, pra ajudar a gente. Mas só vão sair quando a governadora prometer que a nossa situação vai melhorar. Por que não deixaram a nossa comida entrar?

Repórter: Os agentes penitenciários proibiram. Eles dizem que comida, material de higiene e limpeza é o Estado que tem de fornecer.

João Maria: Essa porcaria que dão pra gente nem cachorro come. Aqui a gente passa fome. Tem preso doente por causa dessa comida estragada. Vem você comer essa merda. Quero ver a governadora e o secretário comerem essa merda.

Repórter: Fica calmo. Tô indo pra Alcaçuz. Quem é que tá no comando aí?

João Maria: Quem manda aqui é o PCC. Aqui todo mundo é irmão. Todo mundo é o PCC. Venha que a gente quer a imprensa aqui. Com vocês aqui, a polícia não faz nada com a gente. Se não tiver imprensa aqui, eles vão invadir. Vai ter morte, tô avisando.

Repórter: Espera que eu tô chagando. Quando eu estiver aí, ligo de volta. Deixa o telefone ligado. Quem te deu o telefone que você tá usando?

João Maria: Você sabe que visita não entra com celular. Quem entra com telefone são os agentes. É só pagar que você recebe.

Repórter: Quem são os agentes? Quanto custa o telefone?

João Maria: Sou burro não. Se disser o nome deles eu morro. O telefone custa mil reais.

Repórter: Ficou caro, né? Ano passado um colega seu disse que valia uns R$ 200 ou R$ 300, no máximo.

João Maria: Por este valor você não compra nem o chip.

Repórter: Vou desligar. Quando chegar aí eu ligo.

A reportagem deixou a redação do NOVO JORNAL, no bairro da Ribeira, por volta das R$ 7h. Até Alcaçuz, em Nísia Floresta, em função da chuva e do trânsito lento, o percurso demorou quase uma hora. E logo na entrada da penitenciária, ficou nítido que havia algo errado.

Estranhamente, apenas os agentes penitenciários estavam no rol de entrada de Alcaçuz. Dez ao todo. Apenas dez homens para tomar conta de mais de 700 presos. No presídio a Polícia Militar fica do lado de fora, fazendo a guarda externa. Dentro, só os agentes penitenciários. Apenas os dez.

Repórter: João, aqui só tem agente penitenciário. O diretor (major Marcos Lisboa) não está aqui. Nem o coordenador (José Olímpio).

João Maria: Cadê você? Aparece aí no portão pra eu ver.

Repórter: Tô aqui. Tá vendo? Acena aí pra eu te ver.

João Maria: Tô aqui. Tá vendo bandeira do PCC. Vou balançar pra você ver.

Repórter: Balança pro fotógrafo fazer a foto.

João Maria: Manda esse policial que dá do teu lado sair daí.

Repórter: Aqui não tem PM. Só tem agente penitenciário.

João Maria: Esse que tá aí, do teu lado. Manda ele sair.

Repórter: É o Ney Douglas, meu fotógrafo. Essa capa verde é de chuva. Se molhar a câmera não tem foto.

João Maria: (depois de gargalhar) Cara, ele parece um PM. E cadê o secretário? Cadê a governadora?

Repórter: João, a governadora não vem. Você me disse que não é burro. Você acha mesmo que a governadora vai se curvar pra preso? Ela é a governadora do estado. Já liguei para o secretário Thiago Cortez (Sejuc) e ele disse que também não vem. Mas a imprensa tá aqui. É só você exigir a nossa presença e nós vamos conversar. Tá certo assim?

João Maria: Então liga pra Wellington (o vice-diretor). Aí você entra com ele e a gente negocia.

Repórter: Eu não negocio nada. Posso ir com ele pra você ver que estamos aqui pra resolver sem precisar a polícia entrar. Não é isso que você quer? Você me ajuda que eu te ajudo. Fechado?

João Maria: Eu vou dar 15 minutos pro Wellington chegar. Se ele não aparecer vamos mandar um aviso. Quem é que tá na chefia aí?

Repórter: Aqui só tem agente penitenciário. O chefe da equipe é o Eduardo. Vou passar pra ele. Não desliga.

Neste momento o agente Eduardo Júnior, chefe da equipe, pega o telefone da reportagem e conversa com João Maria. Dois minutos de conversa foi tempo suficiente para o agente garantir ao preso que não haveria represália. “Da minha parte você pode ficar tranquilo. Wellington já tá vindo pra cá. Quando ele chegar vocês conversam. As mulheres saem e tudo fica numa boa. Pode confiar que ninguém vai sofrer nada”, disse Eduardo, devolvendo o telefone ao repórter.

Repórter: Tá vendo João. Tá limpeza. Deixa as mulheres saírem.

João Maria: Só quando eu falar com Wellington. Ele tem que voltar pra direção. Ele a gente respeita. Esse diretor que tá aí (major Lisboa) só faz humilhar a gente.

Repórter: João, espera aí que o carro de Wellington tá chegando. Acho que é ele. Não desliga que vou passar o telefone pra ele. Não desliga.

Wellington entrou em Alcaçuz por volta das 8h20. Naquele exato instante, já fazia praticamente 24 horas que as mulheres estavam dentro do presídio.

Repórter: Wellington, tem um preso aqui na linha querendo falar com você. Ele disse que só negocia com o senhor.

Wellington Marques: É você João? Tenha calma que eu vou aí falar com você. Vai sim, a imprensa vai sim. Anderson tá aqui do meu lado e vai também. Tô entrando.

Portões abertos, o vice-diretor caminhou em direção ao pavilhão 1. Do rol de entrada até o portão que dá acesso ao pavilhão, são quase 200 metros. Wellington seguia na frente, com os agentes penitenciários armados logo atrás. Na cola deles, naquele momento, toda a imprensa. Além do NOVO JORNAL, jornalistas da TV Cabugi, Ponta Negra, Tropical, Sim TV, Band, TV União, Diário de Natal, Tribuna do Norte, Jornal de Hoje, Portal BO e Nominuto.

Em terra de cego, quem tem um olho só é rei

Já sem o telefone nas mãos, que ele não é besta, João Maria foi o primeiro a aparecer no portão do pavilhão 1. Com a garantia que não haveria castigo, o preso que pertence ao PCC autorizou a saída das mulheres. Aos poucos, uma a uma, elas deixaram o prédio. Algumas cobriram o rosto quando viram as câmeras. Outras correram e passaram de dizer nada. E teve as que apenas caminhavam tranquilas, sorridentes. Poucas pararam para contar suas histórias. Porém, todas elas, sem exceção, mostravam-se completamente revoltadas com o tratamento que os presos recebem nas celas de Alcaçuz. A experiência elas viveram.

Após a saída delas, João Maria conversou com o vice-diretor. Disse que em dez minutos todos os detentos retornariam às suas celas sem causar problemas. Antes, levantou a camisa para mostrar que não estava armado. De camisa pólo listrada, bermudão estampado e tênis brancos, acenou para o repórter e sorriu. Com o polegar estendido para o alto fez sinal de positivo. “Beleza, Anderson! Tá tudo bem!”, gritou.

Por fim, duas coisas ficaram gravadas com este repórter. Primeiro, o número do celular de João Maria da Silva, traficante. Depois, a mais importante: tratando-se de Alcaçuz, onde as autoridades competentes fazem questão de virar as costas para não enxergar o que acontece dentro da maior unidade prisional do Rio Grande do Norte, João Maria, que só vê por um olho, é rei.

“Seu Wellington, não machuca meu marido. Tudo que acontece de ruim, o senhor sabe, botam logo culpa no João. Por favor, ajuda ele”. As palavras são de Danúbia Santos, de 30 anos. Ela é mulher de João Maria da Silva. “Fica em paz. Nada vai acontecer a ele”, respondeu o vice-diretor.

Com a promessa de não haver castigo, presos libertam 54 mulheres que passaram 24 horas dentro de Alcaçuz

Perdeu quem apostou que a fúria registrada nas duas maiores unidades prisionais do estado havia acabado no final da tarde da quarta-feira. Em Alcaçuz, maior presídio do Rio Grande do Norte, onde hoje estão confinados mais de 700 presos, muitos deles considerados de alta periculosidade, o clima de tensão e os ânimos só se acalmaram, de fato, no início da manhã de ontem, quando os internos finalmente concordaram em libertar 54 mulheres que passaram 24 horas dentro dos pavilhões 1 e 3 da penitenciária. Esta foi a primeira vez na história potiguar que mulheres dormem com presos dentro de uma unidade prisional. Risco assumido por elas. Perigo permitido pelo Estado.

As 54 mulheres que pernoitaram em Alcaçuz entraram na penitenciária no início da manhã da quarta-feira, por volta das 8h – dia e horário da semana reservado para a intimidade dos casais. Ao todo, passaram pelos portões mais de 100 mulheres, mas quando estourou a rebelião, metade recusou-se a sair. O motim aconteceu porque os agentes penitenciários proibiram a entrada de alimentos e materiais de higiene. Indignados com a atitude dos agentes, que reivindicam ao governo aumento de 45% nos salários e melhores condições de trabalho, os presos ficaram se amotinaram, invadiram a ala de adaptação onde ficam os presos que cumprem castigo e saíram destruindo tudo o que encontraram pela frente. O resultado de toda a selvageria ganhou as páginas de ontem do NOVO JORNAL.

Na Penitenciária Estadual de Parnamirim (PEP), a situação foi semelhante, ou seja, contrariados com o tratamento dos agentes, dezenas de detentos também se rebelaram e partiram para a pancadaria. Na ocasião, dois internos de cada penitenciária sofreram ferimentos causados durante brigas e confrontos entre grupos rivais.

Contudo, o que não foi informado à imprensa, naquela ocasião, é que metade das mulheres que entraram em Alcaçuz havia se recusado a sair quando a polícia invadiu os pavilhões. “Quando a guarda carcerária conseguiu fazer com que os rebelados retornassem às suas celas, elas já estavam lá dentro. E lá ficaram”, esclareceu José Olímpio, coordenador do sistema prisional.

Reféns de livre e espontânea vontade

As 54 mulheres que passaram a noite e madrugada dentro de Alcaçuz, ao lado de seus respectivos maridos e companheiros, tomaram tal atitude de livre e espontânea vontade. Elas não foram obrigadas e nem ameaçadas. Em outras palavras, tornaram-se reféns por conta própria – risco que assumiram para protestar contra os maus tratos que os apenados vêm sofrendo, principalmente depois do que aconteceu anteontem.

“Nós também assumimos este risco. Confiamos que nada aconteceria com elas e decidimos permitir que passassem a noite lá dentro. Foi a melhor solução que encontramos. Ninguém sabe o que poderia acontecer se a polícia tentasse retirá-las de lá à força”, admitiu o agente Wellington Marques, vice-diretor de Alcaçuz.

“Ficamos aqui porque quisemos. Não fomos obrigadas a nada. Fizemos isso para proteger nossos maridos. Se a gente não faz isso, eles iam apanhar da polícia”, disse a dona de casa Joseni Bernardino, de 23 anos, grávida de seis meses. A gestante é mulher do detento Fernando Teixeira, preso há um ano e meio por roubo e assalto à mão armada. “Nossos maridos sofrem muito aqui dentro. Apanham todos os dias. A comida deles é azeda, nem cachorro come. São tratados que nem bicho”, desabafou.

Angustiada com a possibilidade de acontecer alguma represália, Joseni se despediu fazendo um apelo à governadora Rosalba Ciarlini. “Queria que a governadora tivesse piedade dessa gente. Meu marido errou, mas está pagando pelo que fez. Pedimos para que os nossos maridos tenham um tratamento humano. Só queremos um pouco mais de respeito. É só isso”, suplicou.

Sem água, luz e comida, mulheres dormiram na quadra

As 54 mulheres que pernoitaram em Alcaçuz não tiveram uma boa noite de sono. Longe disso. Apesar do consentimento da direção do presídio, tudo foi feito para que elas desistissem do protesto e saíssem dos pavilhões. Porém, não adiantou nada cortar a luz, a água e a comida.

“Quando começou a escurecer cortaram a energia. Não deu nem pra assistir a novela. Ficamos sem ter notícia de nada. Só mesmo ouvindo música com os radinhos de pilha”, contou uma moça de 23 anos que não quis se identificar. Outra jovem, da mesma idade, também preferiu o anonimato para poder contar a experiência. “Nunca pensei passar por uma situação dessas na minha vida. Agora eu sei o que meu namorado sofre aqui dentro. O banheiro é horrível. Ficamos sem água para nossa higiene, sem comer, sem poder dormir direito. Não consegui fechar o olho, com medo de a polícia entrar de surpresa e pegar a gente no meio da madrugada”, disse ela.

Como o calor dentro dos pavilhões é difícil de suportar, o jeito foi improvisar. Colchões foram retirados das celas e colocados no meio da quadra, ao ar livre. Enquanto as mulheres tentavam descansar, a vigília ficou por conta dos presos. “Meu marido se chama Lucenildo Bezerra. Foi preso por tráfico de drogas e está aqui vai fazer dois anos. Ele ficou do meu lado o tempo todo. Amo muito ele”, disse a cozinheira Maria Cristina Cabral, de 34 anos.

Sim, elas também namoraram

Seria hipocrisia não pensar que os presos, que passam dias aguardando a visita de suas mulheres, não aproveitariam uma situação inédita como esta para matar a saudade acumulada. E a pergunta foi inevitável. “Deu pra namorar?”, perguntou o repórter. “E como deu. Quando a gente vem aqui, nas quartas-feiras, temos pouco tempo. O portão abre às 8h, mas só pode entrar até meio-dia. E de 15h todo mundo tem que sair. Desta vez foi melhor, pudemos passar a madrugada toda namorando”, contou a dona Maria das Graças. O nome do maridão ela não quis dizer, mas jura que tirou o atraso. “Na semana passada eu não pude vir. Então aproveitei. Eu não sou besta. Também sou filha de Deus, né?”, sorriu ela, toda animada.

“E eu lá queria saber de calor. Fui pra cela. Fechei a grade, coloquei uma toalha no beliche pra ninguém espiar e fiz ali mesmo”, revelou uma das mulheres. “E o que foi que você fez ali mesmo, mulher danada?”, indagou o repórter. “Fiz aquilo que sua mulher faz com você. Dei pra ele a noite toda”, gargalhou. “Ei. Não bote meu nome no jornal. Se não meu marido não vai mais me querer. E se ele não me quiser, eu vou atrás de você, viu!”, emendou, toda afoita.

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