O sistema

Originalmente publicado aqui



Não quis assistir Tropa de elite no cinema a partir do momento que comecei a ler sobre a reação do público, feliz da vida com as cenas de bárbarie e tortura.  Achei mais saudável para meu fígado esconder-me em casa e ver esse filme, de preferência sozinho.

O primeiro filme se encerra com Matias atirando no rosto do espectador.  O tiro não era no Baiano, mas era em todos nós.  O fato da música que cobre os créditos após a cena ser Lado B lado A
, de O Rappa, comprova isso (“Espero tá bem longe quando o carro preto passar”).  Mas as diferenças de percepção e as surpresas que o filme provocou, inclusive para Wagner Moura e José Padilha, mostram que aquela era uma legítima obra de arte: aberta, passível de ter compreensões possíveis e diferentes.



Quando o assisti percebi de imediato que José Padilha não criou um herói amoral comWagner Moura.  Muito menos pude concordar com quem estava entendendo que o filme apoiava a violência de uma polícia como o BOPE, ou que o próprio diretor era um facista. Quem fez o documentário Ônibus 174, mostrando como a sociedade e o Estado eram responsáveis pelo que se tornou Sandro Nascimento e pela morte dele e da professora refém, não poderia montar um herói tosco como era o capitão Nascimento.
Logo depois de assistir Tropa de Elite, assisti Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles.  Para quem não sabe, um filme não existiria sem o outro. Enquanto filmava seu documentário sobre o tráfico do Rio e a vida do líder do CV, Marcinho VP, Salles era acompanhado por um oficial do BOPE designado como uma espécie de censor dos depoimentos que estavam sendo tomados.  Logo, o cineasta percebeu que o capitão ali tinha muito a contribuir e uma visão crítica muito interessante.  No fim das filmagens, Salles conseguiu convencê-lo a gravar um depoimento.  E o capitão Rodrigo Pimentel terminou, ele, dando o título ao filme.  É dele a expressão “notícias de uma guerra particular”.  E, caso você ainda não tenha ligado o nome a pessoa, Pimentel é o cara que escreveu o roteiro dos dois filmes e é o capitão Nascimento da vida real.  Atualmente, comenta segurança pública para a Globo no Rio de Janeiro.
Pimentel conta que ele e Padilha começaram a escrever ideias para um documentário.  Se você ler Elite da tropa vai entender porque o documentário precisou se transformar numa ficção: exporia muita coisa de muita gente.  O livro é a base do roteiro de Tropa de Elite, mas resulta desse processo em que um documentário se transformou numa ficção.
Quando você termina de assistir Tropa de Elite você sai do cinema com a impressão que a ideia por trás do que fizeram ali é aquela expressa por Nascimento e Matias: a culpa pela violência do tráfico é de quem consome a droga.  Aliás, esse mote consumiu horas e horas de debate em redes sociais, na Internet, nas ruas, na tevê.  O consumidor é responsável pelo negócio do CV, do ADA e do Terceiro Comando.  Sempre vi essa ideia como simplista, reducionista e até ingênua.
Decidi que não assistiria o Tropa 2 no cinema.  Mas não tinha me tocado de alguns fenômenos dos últimos meses: primeiro, o filme foi recorde de bilheteria mas, engraçado, não houve tanto debate público sobre ele quanto ao fim do primeiro filme.  As pessoas me disseram que se tratava de um filme melhor, mas ninguém debatia o que se dava ali.
Assisti ao Tropa 2 ontem.  Algumas impressões são mais gerais.  Uma delas é a noção que a trajetória do herói Nascimento se completa nesse filme.   E ele não é o herói que as pessoas desejaram que ele fosse.  Ele entendeu que era um inocente útil.  No primeiro filme, o capitão, humanizado, era um ingênuo.  Um inocente.  Matava, mas não sabia porque tinha de matar.  O segundo filme mostra o aprofundamento da tomada de consciência de Nascimento.  Ele não servia à sociedade.  Matar e torturar não era pelo bem comum.  Isso deve ter decepcionado aqueles que caricaturaram o capitão Nascimento e o tornaram um herói sem nenhum escrúpulo.  Eu não achava que ele fosse um herói.  Ao que parece, nem Padilha achava isso, e usa o segundo filme para mostrar isso com mais clareza.  Ele se torna o herói ao fim dessa continuação.
Há uma cena que parece uma tentativa que o cineasta teve de tentar mostrar quão babacas fomos nós quando glorificamos Nascimento.  Ele está sendo fritado do BOPE e vai se encontrar com a cúpula da PM e da Segurança Pública em um restaurante.  Ao entrar no lugar, é aplaudido de pé porque “bandido bom é bandido morto”.  É quase uma ironia com o público que amou o capitão que fazia isso na prática.  E a partir dali a história muda de rumo.
Padilha diz numa entrevista que fez três filmes sobre violência urbana.  No primeiro, contou como o Estado e a sociedade constroem um bandido violento.  No segundo, como o Estado e a sociedade constroem uma polícia violenta.  No terceiro, explica porque isso acontece.
A culpa não é do consumidor.  O discurso hipócrita construído a partir da visão ingênua do Matias e do Nascimento do primeiro filme é destruída quando o agora coronel Nascimento apresenta esse monstro chamado de “o Sistema”.  O surgimento das milícias mostra como é engendrado o negócio da indústria Crime Organizado.  Mas o coronel é quase o último a perceber.  Seu arquirival, alterego, é quem sabe.  Diogo Fraga, claramente baseado no deputado Marcelo Freixo, mostra a verdade para Nascimento e todos os demais.
Como obra de arte, acho que o Tropa 1 é mais filme.  É nitidamente uma obra aberta.  Carece que nós, seus leitores, complementemos suas lacunas em busca de compreensão.  Seremos capazes de entender coisas completamente diferentes sobre o filme.
Como reflexão, o Tropa 2 é mais profundo e denso.  Põe em claro tudo o que de equivocado sobre a visão do crime organizado, da polícia, e da responsabilidade que foi construído na opinião pública após o primeiro filme.
Talvez por isso as interpretações parciais sobre a tomada do Alemão superaram em tanto a discussão pública sobre o filme.  Até porque lá, na TV Globo, quem dava conta desse discurso parcial e equivocado era o consultor Rodrigo Pimentel.  E se o coronel Nascimento está falando, deve ser verdade.  Ninguém se tocou, naquele momento, que o Sistema é foda e é maior, bem maior, que o Complexo do Alemão.

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