#ForaMicarla: Quem não pula quer migalha!



Concordo bem mais que discordo do texto abaixo de Jota Mombaça.  Minha discordância: não acho que o #ForaMicarla cansou ou acabou-se em um espécie de fracasso.  Sou de opinião que ele cumpriu o seu papel.  Não que ele fosse a instauração da CEI, mas a própria mobilização social.  A ocupação da Câmara foi o apogeu.  A sua potência continua latente.  Por exemplo, quando a situação manobrou para acabar com a CEI dos Contratos, o #ForaMicarla voltou a se movimentar e ameaçou retomar os protestos, inclusive reocupando a Câmara.  
Mas concordo plenamente com o que representam as tentativas de controle partidário de movimentos assim.  Os movimentos contemporâneos possuem um certo espírito anárquico.  Não se amarram ou estruturam em torno dos partidos nem vinculados a eles.  Vão para além deles.  E os partidos estão correndo risco e ficando para trás porque não percebem isso...

Por Jota Mombaça
No Substantivo Plural

O que se convencionou chamar #FORAMICARLA foi, na verdade, a apropriação de uma potência Insurgente de Multidão e a conseqüente transformação dessa potência numa Força-zumbi; a conversão de uma Multidão (multicolorida, plural) em uma Massa (cinzenta, uníssona) por meio da unificação das posturas e dos discursos, por meio de uma est/ética fascista (bordas éticas delimitando a aparência de cordeiros mansos) afirmada sobre o movimento. Nesse sentido, erra quem aponta como marco inicial do movimento a insurgência de 25 de Maio – quando cerca de mil e quinhentas pessoas avançaram rua em Natal.
O que ocorreu em 25 de Maio de 2011 não foi o primeiro protesto do #FORAMICARLA, mas, a despeito do pretenso pretexto, uma insurreição espontânea (como indício disso vale lembrar que a movimentação começou na hora marcada com nem cem pessoas e foi aglomerando gente que vinha do trabalho, da faculdade, que parava para tomar uma cerveja, que soube na hora e decidiu sair de casa) e por isso prenhe de discursos plurais e de um sem-número de pragmáticas, micropolíticas diversas, que extrapolam em muito os limites que as palavras-de-ordem e os gritos-de-guerra pressupõem. Se o que se estava gritando era #FORAMICARLA, o que retumbava nos peitos não era o desejo de destituir a prefeita de seu posto, mas a experiência rebelde de liberdade – que é perfeitamente intraduzível em palavras-de-ordem e gritos-de-guerra.

Todos esqueceram de que, muito antes do acontecimento de 25 de Maio, houve, ainda em Fevereiro deste mesmo ano, um “protesto unificado” (que reuniu sindicatos, representantes de cursos universitários, partidos de esquerda, …, enfim: não pessoas, só entidades). Nesse tal protesto, ao qual me referi no texto “Comunistas Querem Sair do Vermelho”, os fantoches das entidades já cantavam “quem não pula quer Micarla”, e ali já estava mais ou menos estruturado o discurso do #FORAMICARLA – voltado para uma concepção de poder centralizado na prefeita, objetivando não a potência livre de revoluções micropolíticas que a insurgência espontânea de 25 de Maio trouxe consigo, tampouco a redefinição do modelo democrático com vistas a uma estrutura onde a participação política superasse a representação política (propósito muito mais afim à liberdade que o impeachment da prefeita), mas sim uma luta que visava somente mover as peças de lugar sem alterar o tabuleiro.

É exatamente esse o problema dos partidos: eles estão ligados à manutenção da macroestrutura política, dentro da qual eles se inserem. Mas é essa macroestrutura que possibilita toda a teia emaranhadíssima de macro e microcorrupções. O que tem de ser desviado, portanto, não é propriamente o “representante”, a prefeita Micarla de Sousa, mas a estrutura da qual ela depende, o poder de representação política que lhe é conferido.

Luta-se contra a corrupção, não obstante engendrem-na dentro dos corpos. Parece irracional. Não?

[Aqueles que curtem um conforto, vão pensar que eu estou pensando em Ideologia como o sistema simbólico outorgado pela classe dominante para o exercício de sua dominação perante as outras classes, mas eu não. Imaginem que eu concordo com Alípio e penso em Ideologia como um fenômeno ligado a todo o processo de estruturação do simbólico, requerido sempre que se tenta atribuir à construção humana um sentido de imutabilidade, eternidade, natureza.]

A potência expoente do 25 de Maio estava na possibilidade de mutação existencial coletiva, na possibilidades de alterar, em alguma medida, as pragmáticas existenciais. Houve ainda outra experiência de pico, na seqüência do 25 de Maio, uma semana depois.

A moção ganhara força, dado o estardalhaço nas redes sociais, e as ruas haviam sido tomadas por mais uns 2.000 manifestantes. Lembro de um cartaz bem-humorado, que devia ter sido encontrado no meio da rua, com uma mensagem absolutamente dissonante do clima de protesto, levantado por umas cinco figuras, todas alegres, curtindo. Bebeu-se cerveja em meio ao furor político rebelde. Palavras-de-ordem, gritos-de-guerra…: meros acessórios. Pau e Lata ecoou. Lembro de ter fotografado manifestantes cobertos por máscaras ou panos por tê-los achado bonitos. Para andar dos arredores do Machadão, cruzar um viaduto sem carros, fotografar automóveis nas abissais, subir a passarela do Via Direta e ter a visão de uma cidade engarrafada, quase beijei um cara porque era justo que a “minha luta” não me fosse um peso nas costas, uma maldição, mas uma experiência de ecstasy.

Logo a moral e os bons costumes foram acionados. Os jornais sensacionalistas aludiram ao caráter pouco responsável do movimento haja vista o consumo de álcool durante a manifestação. A repórter Sara Vasconcelos, por exemplo, da Tribuna do Norte, em seu emblemático texto publicado na data do segundo levante onde ela “imparcialmente” (HAHAHAHA) falava mal da descentralização do discurso e do caráter festivo da passeata, chegando a cometer a bizarríssima gafe de confundir a palavra-de-ordem “O Egito é Aqui!”, que estava escrita numa faixa, com o carnatalesco trocadilho “O Agito é Aqui!” (essa vai para os anais…). Mas não foram apenas os jorna(l)is(tas) sensacionalistas que contribuiram com o sermão, os analistas políticos locais logo desataram a falar sobre a necessidade de definir as proposições do movimento, no sentido de fortalecer seu discurso, considerando o risco eminente de desmobilização por falta de organização e unicidade. A idéia de uma insurgência plural, livre, descentralizada começara a ser rejeitada. Arava-se o terreno para fazer brotar as ervas daninhas pseudo-revolucionárias/contra-revolucionárias.

Quando a moral e os bons costumes foram acionadas, a necessidade de organização de um discurso uníssono suscitada pelos influentes blogueiros/analistas políticos/intelectuais ativistas, ajudou a instaurar a necessidade de controle dessa potência que estava preenchendo o vazio das ruas. Dessa pretensa necessidade, inventada no seio do sutil conservadorismo latente na sociedade como um todo, decorre a apropriação da Potência de Multidão pelos pastores de partidos políticos. Essa apropriação não configura o domínio objetivo de uma bandeira perante as outras; também não cabe a caricatura de homens-de-partido programando mentalmente cada indivíduo do rebanho. Se formos um pouco sensatos, não será difícil compreender como essa apropriação da Potência de Multidão pelos partidos políticos – tendo como conseqüência a conversão dessa Multidão em Massa – resultou na falência do movimento.

Ora, ao escantear o apartidarismo, o movimento, que lá pelas tantas deu de acampar na Câmara dos Vereadores, exigindo a execução de uma Comissão de Investigação contra a Prefeitura, assumiu uma postura suprapartidária. Esse termo novo empregado ao Coletivo me parece que se configura a partir da afirmação de um interesse superior aos interesses específicos de cada partido, o que faria com que todos os partidos envolvidos deixassem de lado suas demandas específicas em prol de uma luta conjunta por um objetivo maior. O que nem os colegas da Carta Potiguar se deram conta é que mesmo o suprapartidarismo pressupunha uma organização do movimento pautada pelos cânones da política partidária, e, portanto, (pautada) por uma ética castradora da ética da multiplicidade constatada nos levantes de 25 de Maio e 02 de Junho.

Se o discurso unificado do #FORAMICARLA pedia o impeachment da prefeita ou a transformação do Palácio Felipe Camarão num zoológico para a cidade, tanto faz. Tanto faz porque é propriamente na unificação do discurso, ignorando-se assim as diferenças constituintes do todo, que começa a operar a conversão daquilo que era uma Multidão disposta a parar a cidade numa Massa cantando em coro a mesma palavra-de-ordem, sem desafinar, bonito, todo mundo junto. Conforme Negri e Hardt, “a Multidão é como uma rede aberta e em expansão, na qual todas as diferenças podem ser expressas livre e igualitariamente, proporcionando os meios de convergência para que possamos trabalhar e viver em comum, com a ressalva de que isso não quer dizer que todos se tornem iguais.” E nas massas: “não se pode apontar quais dentre os diferentes sujeitos sociais formam as massas, pois a essência das massas é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas. Todas as cores da população reduzem-se ao cinza. Essas massas só são capazes de mover-se em uníssono porque constituem um conglomerado indistinto e uniforme”.

Se o apartidarismo era livre, alegre e plural (como 25 de Maio e 02 de Junho); o partidarismo assumido trazia um tom cinzento, monótono e unívoco a tudo (como 24 de Fevereiro). Ia-se embora o caráter orgiástico de toda insurreição e voltava à cena o tipo de excitação mórbida que parecia transformar cada manifestante num mártir social, num retrógrado herói político sofrendo as injúrias de um sistema que ele mesmo engendra. Era necessário dar de si uma responsabilidade tal que mantivesse o rebelde na linha, consonante à massa que compõe. Veja só que absurdo: uma massa de rebeldes educadinhos.

Se em 25 de Maio e 02 de Junho se experenciou algum tipo de liberdade, esta passou a ser regulada e vigiada pela polícia ética do movimento. A est/ética da rede, que servia de slogan para o movimento, conforme eu mesmo mostrei no meu texto “O Sagrado, eis o inimigo”, na verdade constituía só mais um delírio facilmente contestável. Se na internet somos “livres” para escolher fazer o que a gente bem entender (desde ser bonzinho até ser troll), no #FORAMICARLA não se pôde ser livre a tal ponto, pelo contrário, os limites eram declarados: tratava-se de uma manifestação pacífica e ordeira. Além disso, dizia-se da ação que extrapolasse esse cordão ético uma agressão ao movimento como um todo, ou seja, a conseqüência do ato realizado por um indivíduo diria respeito ao todo, o que também não confere com o modo pelo qual as coisas se dão na internet e nem com a idéia da autogestão. Não consigo acreditar que esses limites tenham sido colocados aí de maneira efetivamente horizontal, acho possível que a maioria dos envolvidos tenham querido andar dentro da corda do pacífico e do ordeiro, mas precisamos refletir com cuidado sobre uma ordem na qual a maioria subjuga o resto à sua vontade unívoca (também devemos refletir com cuidado sobre uma maioria com vontades unívocas), porque isso nada tem a ver com a autogestão suscitada pela internet e apropriada pelo discurso marketeiro do movimento.

Transformada a Potência Insurgente de Multidão, que estourou espontaneamente em Natal em 25 de Maio de 2011, numa luta institucionalizada e antiquada, uma Força-zumbi guiada por uma cartilha redutora da pluralidade que a possibilitou, não é estranho que a força do movimento tenha se convertido num tipo de cansaço, numa preguiça social. Contribuiu para isso também a ilusão de que conseguir que a Câmara instaurasse uma Comissão Especial de Investigação contra a prefeitura teria configurado uma vitória do movimento, que, no final das contas, nada fez senão afogar a multiplicidade para depois nadar em linha reta, deslumbrado, até morrer na praia. Se em 25 de Maio e 02 de Junho pôde-se viver uma insurreição com desdobramentos efetivos na vida das pessoas, o que se viveu depois, na apropriação do movimento pelas forças retrógradas dos partidarismos, foi a Morte de Baleia: numa sombra, delirando preás enormes, gordos, suculentos, mas que não podem matar a fome.

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