#OcupaUSP: Prende e arrebenta

Na Carta Capital



Diogo Vargas tinha acabado de tomar um café na copa da reitoria da Universidade de São Paulo quando foi avisado de que a Tropa de Choque da Polícia Militar havia chegado. O estudante de Comunicação Social mal teve tempo de entender o que ocorria: viu pela janela centenas de policiais à espreita. Enquanto corria, tentava avisar os colegas da ocupação, sem sucesso. Em pouco tempo, todos estavam encurralados pela PM em uma escada de incêndio do prédio.

Acabava de amanhecer na terça-feira 8. As imagens dos 73 estudantes presos corriam o País. A operação com 400 policiais foi aplaudida pela sociedade, que parou para ver a trajetória dos estudantes “baderneiros, filhinhos de papai”, que depredaram o patrimônio público e desobedeceram à lei.
Conforme a poeira assenta, outros aspectos começam a surgir. Abusos policiais foram denunciados, como o amordaçamento de uma estudante que entrou em pânico na perseguição. O conjunto residencial da USP foi cercado e estudantes afirmam ter sido impedidos de sair de -suas casas durante a operação. Além disso, os episódios que ocorreram na reitoria, entre a entrada dos PMs e a saída dos detentos, estão mal esclarecidos. Estudantes dizem que a própria PM depredou o patrimônio, quebrando vidros e equipamentos.

A ocupação da reitoria, contestada até mesmo por setores do movimento estudantil, foi um erro político, segundo Vladimir Safatle, professor da Faculdade de Filosofia da instituição. Radical, foi um passo estrategicamente equivocado, que só serviu para estigmatizar a manifestação. Mas os eventos de terça 8 criaram um rebuliço político entre alunos que até então viam o episódio com desconfiança. Na terça à noite, 3 mil pessoas, segundo o Diretório Central dos Estudantes (DCE), compareceram a uma assembleia dos alunos da universidade e decretaram greve das atividades acadêmicas. “Tudo isso fez a conscientização dos estudantes crescer em relação à repressão”, comenta o juiz Jorge Luiz Souto Maior, professor da Faculdade de Direito.

A situação é uma reação à falta de democracia na instituição. “A reitoria não ouve os alunos e vai criando ressentimentos. Qualquer coisa pode servir como faísca. Isso nunca teria ocorrido se na USP houvesse um debate mais democrático.” O filósofo desmistifica o argumento de que alunos são compostos de pessoas de alta renda. “Aluno de classe rica não tenho quase nenhum”, diz.Assim, a discussão central de todo o episódio – a presença da Polícia Militar no campus como solução para o aumento dos índices de criminalidade no local – passa pela crítica ao modelo de decisões da universidade. Souto Maior afirma que a universidade tem de ser um ambiente de debate e de efervescência política, que não pode ser reprimido dessa maneira. Além disso, todo o evento deve ser encarado como uma ação política, e não vista simplesmente pela ótica da legalidade.

Para Souto Maior, o problema é a falta de compreensão da administração da USP sobre os movimentos sociais que existem internamente. Com o argumento do respeito à lei, a reitoria reprimiu os estudantes politicamente e evitou o debate democrático. “O tamanho desproporcional da operação foi para mostrar poder. A razão impulsional foi reprimir uma ação política.” Segundo Luiz, ainda falta espaço na democracia brasileira para a livre discussão e ação política espontânea. O episódio na USP seria um reflexo.

O reitor João Grandino Rodas aprovou em maio passado a entrada da Polícia Militar no campus em um convênio para a implantação da polícia comunitária. O convênio foi assinado poucos dias depois do assassinato do estudante de Ciências Atuariais Felipe Ramos Paiva, em uma tentativa de assalto no estacionamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA). O tema, tratado em debates há anos na USP, tornou-se alvo de críticas de estudantes, professores e funcionários. Questões como repressão política e a própria forma de abordagem da polícia são argumentos usados contra o convênio.

O plano foi efetivado no início de setembro. As blitze, que tinham aumentado substancialmente desde o assassinato, se intensificaram e rondas da PM passaram a ser comuns. O projeto faz parte de uma tentativa da própria corporação de integração de direitos humanos às suas práticas. “A Polícia Comunitária passa a ser ponto de referência na comunidade. Você começa a criar uma relação de confiança e as pessoas começam a passar informação”, explica Álvaro Batista Camilo, comandante-geral da Polícia Militar. A estratégia foi utilizada em comunidades e bairros da capital, como o emblemático caso do Morumbi, onde diversas bases foram instaladas entre o bairro de classe média alta e a favela Paraisópolis, e é responsável por um sistema para identificar traficantes e ladrões, segundo o comandante.

Desde o início das atividades do convênio, estudantes relatam as constantes abordagens. “Os policiais estão lá para garantir segurança aos estudantes, mas estes acabam sendo alvo da ação policial”, afirma Safatle. Wesllen Souza, do 1º ano do curso de Ciências Sociais e morador do Crusp, diz ter sido abordado cinco vezes desde que o convênio começou a funcionar há dois meses. Souza, que é negro, rapper e de baixa renda, afirma sofrer muito mais que colegas brancos, de alta renda e com outro estilo. “Como aqui na USP não tem muitos negros, você acaba sendo um alvo fácil.” Além de racismo, os policiais teriam demonstrado preconceitos sociais. Em duas das vezes em que foi enquadrado, Souza estava sem a carteira de identificação de estudante. A abordagem foi muito pior. “Enfiaram a mão na minha cueca e tive que tirar a camisa.” Safatle reflete: “Não sei quem está seguro com uma polícia dessas, inadaptada para lidar com problemas sociais e com heranças profundas da ditadura”.

Seja como for, a ação de terça 8 não contribuiu para melhorar a imagem que a PM tem dentro do campus. Vargas e Rodrigo Marzano, estudante de Artes Plásticas, também detido, reclamam da tortura psicológica constante durante a prisão e da humilhação. Marzano destaca a convicção com que os PMs os chamavam de bandidos.Vargas conta que percebeu nos policiais uma preocupação em mostrar tudo à mídia, cinematograficamente. Ao chegarem ao DP, por exemplo, sentados com a cabeça entre as pernas e sem poder ver nada, afirma ter ouvido a frase: “A Globo chegou. Agora pode soltar eles”.

A atuação da mídia foi outro ponto que marcou os estudantes. Ariscos a qualquer aparição e temerosos, os participantes da ocupação rechaçaram a presença da mídia e mantiveram rostos cobertos durante todo o tempo. Na assembleia do dia 1º, provocações mútuas criaram um conflito entre as duas partes. Marzano relata ter recebido provocações frequentes por parte de jornalistas. Segundo ele, quando saía do prédio, já detido e com as mãos na cabeça, ouviu um dos repórteres dizer: “Ah, agora vocês estão aí”.

O consumo de maconha foi outro tema que permeou todo o debate. O movimento de ocupação teve início em 27 de outubro, após três estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), que consumiam a droga, serem autuados por policiais. Em decorrência, cerca de 500 alunos da faculdade iniciaram um protesto para impedir a prisão dos colegas. O incidente acabou em confronto com policiais, que utilizaram bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha. Na mesma noite, um grupo envolvido no episódio decidiu ocupar a administração da faculdade, ocupação transferida para a reitoria em 1ºde novembro.

Apesar de classificar a ocupação como radical, Safatle condena o comportamento da PM. A reação policial, segundo ele, foi completamente desproporcional. “A Universidade é lugar para pesquisar e estudar, não para beber e fumar maconha, mas há maneiras muito mais inteligentes de se lidar com isso do que da forma como ocorreu.”

“A questão agora é o que fazer daqui para frente”, comenta Souto Maior. A reitoria está desocupada, mas o debate continua. Os estudantes parecem dispostos a manter o assunto em voga.

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