Há vozes contrárias a qualquer  tipo de cota. A alegação principal é de, acreditem, racismo. Os principais  argumentos estariam em dois dispositivos da  Constituição Federal. Eis o que dizem:
  "Art. 7º São direitos dos  trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua  condição social: (...) XXX – proibição de diferença de salários, de exercício  de funções e de critério de admissão por motivo de sexo,  idade, COR ou estado civil;
  "Art. 39, § 3º Aplica-se aos servidores  ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII,  XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer  requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir".
  O argumento contra se fundamentaria na isonomia. Com as cotas,  estar-se-ia criando favorecimento indevido. Se estimularia a preguiça dos que não se afeiçoam aos  estudos e desestimularia a salutar livre concorrência.  Promover-se-ia, assim, um paternalismo indesejável e prejudicial ao progresso  da sociedade. E há os que ataquem a viabilidade das medidas, sob o argumento de que não há como definir o público-alvo; afinal, quando se é contra, qualquer desculpa serve.
  Primeiramente, acho melhor traçar  o panorama atual para, depois, buscar as razões dessa desigualdade e, tão  somente, concluir com meu entendimento sobre a questão. Vou limitar a abordagem aos afrodescendentes, sob pena de escrever um texto inadequado para uma postagem de blog. Mas adianto que, em relação aos índios, não há muitas diferenças em termos de exploração e opressão.
  Com a abolição da escravatura  negra (cuja tardança nos fez assumir o desonroso posto de último país do mundo  a fazê-la), sabem qual foi a única "política pública" implementada  pouco mais de um ano depois? Um novo Código Criminal que dedicou o Capítulo XII  à punição dos "Mendigos e Ébrios" (e nem preciso dizer que os negros  "libertados" saíram das senzalas, literalmente, com uma mão na frente e outra  atrás) e o XIII, aos "Vadios e Capoeiras", punindo (art. 402) quem praticasse  a conduta de "fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e  destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem". Os negros continuaram  escravos da sua condição pré-histórica. Não sabiam exercer qualquer arte ou  ofício além do trabalho desumano e braçal que aprenderam à força, sob o chicote dos capitães-do-mato.
  A imigração europeia em  massa seguiu um caminho bem diferente. Com o fim da escravidão, o Brasil se  tornou um país de extremos. De um lado, o baronato das usinas de cana-de-açúcar  e os grandes cafeicultores; do outro, a massa pré-histórica e faminta de  ex-escravos, desprovidos de recursos de qualquer natureza, sem terra, sem cidadania,  sem dignidade. No meio, uma escassa classe média de pequenos comerciantes e dos poucos servidores públicos. O plano do governo era, por um lado, fomentar,  através da imigração europeia, a construção de uma classe média relevante. Oportuna  a imigração em razão da crise na Europa. Ademais, a mão de obra imigrante era  qualificada, com costumes e religiosidade semelhantes à da antiga matriz. E  havia a necessidade de povoar a região Sul do país, sempre ameaçada de ocupação  pelas nações vizinhas.
Artesãos e agricultores europeus aportaram em nossas terras, fugindo da fome provocada pela revolução industrial. A política governamental foi a da distribuição de terras e deveriam vir com as famílias, para promover a eugenia, a difusão da etnia branca. Cabe acrescentar que aos negros e índios era vedada a distribuição de terras. Assim, o mesmo escravo que aqui nasceu e que sofreu no pelourinho, sequer tinha o direito a um pedaço de chão. Já o branco estrangeiro que imigrava tinha a política governamental de incentivo agrário a seu favor. O darwinismo social e a eugenia racial se efetivavam, com o fim de "branquear a população".
  Assim, cara pálida, saiba que a  representatividade deficiente do afrodescendente na sociedade brasileira não se dá por culpa dele, muito menos por preguiça ou incapacidade. Trata-se de uma  condição de opressão histórica que os afeta hoje como reflexo do passado. Ou  você já parou para pensar que há menos negros nas universidades porque eles  frequentam menos escolas privadas porque seus pais também já são legatários de  uma triste herança de desigualdade? E que isso é um círculo vicioso que não  terá fim sem ações afirmativas?
  Trata-se de uma violência  sistêmica, que não é compreendida facilmente porque já foi introjetada em nossa  normalidade. Termina sendo vista como algo corriqueiro, naturalizado no cerne  das relações sociais. Essa violência é ideológica, passando ao largo da  percepção dos que as sofrem e, muitas vezes, também dos que as exercem.  Caracteriza-se pela fabricação, através do discurso, de falsas crenças que  induzem o indivíduo a acreditar, a consentir e a se comportar de acordo com os  padrões desejados pelo estamento.  E imersos nessa violência que atua como ideologia, até mesmo os submetidos a  ela começam a crer que se tratam de fatos naturais ou inevitáveis, etapas de um  processo civilizatório evolutivo ou constitutivo do mundo.
  E assim: a) as abissais  desigualdades econômicas e sociais do Brasil são "naturais"; b) o mercado dá  iguais oportunidades a brancos e negros e que não temos que responder por fatos  ocorridos no passado, porque os negros se encontram em tais situações por  "culpa própria", "inaptidão" ou "preguiça" (ou mesmo inferioridade racial,  acreditem, pois ainda há quem, em pequenos círculos, pense assim). Dessa foram, não se atenta para o  fato de que o déficit de representatividade econômica, social e política dos  afrodescendentes decorre de práticas que, por inúmeras gerações, os discriminaram negativamente. E não existe o explorado sem o explorador.
  Os tempos exigem um olhar com  alteridade, partindo de lá, além das nossas fronteiras individualistas e de  conveniência, que somente uma viagem ao encontro do outro pode permitir. E quem  sabe, reconhecendo o outro, possamos nos conhecer melhor, estranhando e  evitando as posturas de apartheid.
  Por fim, respondendo à objeção de  pretensa violação de princípios constitucionais que vedariam a existência de  cotas, trata-se  de argumentação sem fundamento normativo.
  Cotas não são critérios para  admissão. Não se estará restringindo a admissão a afrodescendentes. Pelo  contrário, estar-se-á permitindo que haja uma representatividade social  compatível com o contingente que representa na população brasileira. Isso se  chama isonomia. É o mínimo que podemos fazer, ainda que com tanto atraso, para  promover esse resgate histórico. E não será nenhuma novidade uma possível  regulamentação afirmativa por parte do CNJ. Cotas em concursos públicos já  existem, atualmente, para portadores de necessidades especiais.
  O que temos hoje, materialmente,  é "cotas" para brancos, ainda que sub-repticiamente impostas. Ou, talvez, até, "critérios discriminatórios" que se exercem e se depuram nas práticas  sociais mais comuns e diuturnas. Apenas não existem na ordem do discurso. Elas se reafirmam nas listas de vestibular e de  aprovação em concursos públicos. Ou todas as estatísticas mentem?
  O Judiciário bem que poderia dar o  exemplo de como pormos fim a esse violento e secular círculo vicioso. E me  pergunto agora: quantos dos 15 conselheiros do CNJ, que decidirão essa questão,  são afrodescendentes? Seria um bom começo para uma reflexão do próprio colegiado  sobre o tema.
  Minha última palavra é sobre a  foto. Para quem não me conheça e possa imaginar que argumentei em causa  própria, o menininho loiro sou eu, aos três anos.
  
  
*Rosivaldo Toscano Jr. é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

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