"Liberdade, abra as asas sobre nós!"

Luciano Ramos - Procurador do MPJTCE/RN, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP

"A polícia apresenta suas armas. Escudos transparentes, cassetetes, capacetes reluzentes. E a determinação de manter tudo em seu lugar. O governo apresenta suas armas. Discurso reticente, novidade inconsistente. E a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godard" (Selvagem, Os Paralamas do Sucesso).

Lamentável observar que nossa tenra democracia ainda não se fortaleceu ao ponto de conjugar as diversas liberdades que deverão conviver harmonicamente em uma sociedade. No inconsciente coletivo, parece ainda grassar os anos de repressão que por demais vivemos para que não tivesse consequências sobre cada um de nós. Queira Deus, que nossa sociedade ainda veja manifestantes exercendo a cidadania e os policiais suas atribuições do Estado Democrático de Direito, muito longe de serem inimigos em um campo de batalha.

Todavia, por mais impertinente que tenha sido o confronto entre a Polícia e os estudantes nas manifestações destes contra o aumento da passagem de ônibus em Natal, não podemos esquecer a causa primeira de todo este imbróglio, que é a caótica gestão do transporte público de passageiros na cidade do Natal e, de maneira ainda mais ampla, a mobilidade das pessoas por nossa cidade.

Enquanto diversas cidades discutem meios intermodais de transporte de passageiros, conjugando ciclovias com ônibus, metro e trens urbanos, nossa Noiva do Sol limita-se a disponibilizar aos seus cidadãos a opção de ônibus e ainda assim precariamente regulada, pois jamais fez a licitação para a permissão deste serviço público essencial.

À evidência, é flagrante a ofensa ao texto constitucional, cujo art. 175 impõe cabalmente que todas as permissões e concessões de serviço público sejam precedidas de licitação. Não havendo margem de dúvida sequer quanto ao imperioso momento de sua adequação para os contratos em curso que não tenham sido precedidos de licitação: 31 de dezembro de 2010!

Conforme art. 42, § 3º da Lei Nacional de Concessões (Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995), este era o prazo máximo de vigência de todos estes contratos precários, como é o caso do serviço de transporte público de passageiros em Natal, ainda assim, desde que fossem preenchidos diversos requisitos estabelecidos pela lei. Repita-se: 31 de dezembro de 2010!

A Lei de Concessões deu generosos 15 anos como prazo máximo, absoluto, para situações específicas, que sequer se tem certeza que o transporte de passageiros em Natal se enquadra nestas excepcionais circunstâncias autorizativas. E ainda assim, até este prazo foi estourado. Pois bem, adiou-se o quanto pode o inadiável, driblando as imposições legais, e colheu-se o caos.

Como afirmou o diretor do Le Monde Diplomatique, "o serviço público é o patrimônio de quem não tem patrimônio", por isto que suas alterações impactam de maneira tão contundente na vida de todos nós, pois este é garante da interdependência social e nos amálgama como sociedade. Com ele, permite-se o acesso a direitos fundamentais, como o direito de ir e vir, que de outro modo parcela considerável de nossa população estaria alijada do seu justo exercício.

A ausência de licitação e, por conseguinte, a inexistência do devido planejamento do serviço público de passageiros em Natal impacta toda a economia de nossa cidade, em que as pessoas demoram mais tempo do que o razoável para chegar ao seu trabalho, atingem níveis de estresse insuportáveis em virtude de ônibus atrasados e lotados, além da ineficiência do sistema impossibilitar a efetividade do princípio da modicidade das tarifas, de modo a atingir o maior número possível de usuários-cidadãos (sem licitação e contrato administrativo devidamente disciplinado, não se tem regras claras de fixação da tarifa, nem se afere precisamente o impacto redutor no valor da passagem de receitas agregadas, como é o caso da venda de espaços de publicidade nos ônibus).

Como exemplo desta negativa repercussão econômica, recentemente fui a um restaurante que costumava fechar mais tarde aqui em Natal, disposto a tomar um bom vinho e ter uma noite agradável, mas de plano advertiram-me que a casa estava encerrando por aquela noite. Estranhei a mudança repentina de horário e indaguei o porquê. Ainda mais surpreendente foi a resposta: como não havia e não há transporte público seguro na hora que eles encerravam, a logística para deixar os funcionários em casa não compensava deixar o estabelecimento aberto até mais tarde.

Impedido de tomar meu vinho (mal menor incomparável com o daqueles que se viram tolhidos na liberdade de ir e vir), conclui a noite refletindo quanto de incremento de nossa economia deixa de existir porque as pessoas não se movimentam segura e decentemente por nossa cidade. Difícil o cálculo, mas inexorável a sua existência.

Ainda mais difícil do que isto é saber quando os que tem dever-poder de mudar esta realidade dela se aperceberão e deixarão de fazer ouvidos de mercador para as manifestações das ruas. Da próxima vez, que se enviem ouvidores, não bombas de gás lacrimogênio.

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