Governo atropela lei de licitações

Por Dinarte Assunção

O Valor Econômico desta segunda-feira traz em manchete uma matéria alarmante: o governo está fazendo da exceção uma regra, ao se valer cada vez mais do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), colocando em xeque o futuro da Lei de Licitações

Desde julho, o novo regime passou a englobar os empreendimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em outubro, foi estendido para a área de educação e, neste mês, o Congresso aprovou sua aplicação às compras da saúde. Levantamento feito pelo Valor aponta que os orçamentos planejados para os próximos anos pelo PAC, Copa do Mundo e Olimpíada, além do que está previsto em 2013 para saúde e educação, somam R$ 700 bilhões.

Abaixo, a matéria na íntegra:A exceção virou regra. Quando foi criado em 2011, por meio de um “contrabando” feito em uma medida provisória, o Regime Diferenciado de Contratação (RDC) tinha o propósito específico de acelerar a contratação de obras da Copa do Mundo de 2014 e Olimpíada de 2016. Incluído no texto que instituía a Secretaria de Aviação Civil, o RDC prometia mais celeridade às obras de aeroportos e demais empreendimentos ligados aos eventos esportivos. Era só o começo. Depois de algumas experiências bem avaliadas pelo governo no setor aeroportuário, o RDC simplesmente passou a dominar as principais compras públicas federais, colocando em xeque o futuro da Lei de Licitações (8.666).

De obras da Copa e Olimpíada, o RDC passou a englobar desde julho os empreendimentos listados no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em outubro, foi a vez de o regime ser estendido para a área de educação. Neste mês, o Congresso aprovou sua aplicação nas compras de saúde. O peso dos investimentos públicos que migraram para o guarda-chuva do RDC dá uma ideia clara da relevância que esse regime passou a ter para o governo. Paralelamente, refletem o abandono da 8.666. Levantamento feito pelo Valor aponta que, somados os orçamentos planejados para os próximos anos pelo PAC, Copa do Mundo e Olimpíada, além do que está previsto em 2013 para os setores de saúde e educação, chega-se a uma conta de R$ 700 bilhões em investimentos. Do total, R$ 526 bilhões referem-se a recursos do PAC, já descontados os repasses do Minha Casa, Minha Vida, que não se enquadram na categoria, por serem negociados diretamente pela Caixa Econômica Federal. A saúde reserva investimentos de até R$ 80 bilhões para o ano que vem. Na educação, estão previstos mais R$ 50 bilhões.

Apesar da aposta pesada que o governo decidiu fazer no RDC, o regime está longe de ser uma unanimidade, a começar pelo caminho que foi usado para a sua criação. O método é questionável: a inclusão das chamadas “emendas contrabando” em medidas provisórias. Trata-se de dispositivos incluídos nas MPs durante sua tramitação no Congresso Nacional e que, na maioria das vezes, não têm nenhuma relação com o objeto inicial da MP. O efeito imediato dessa artimanha é que a discussão sobre prós e contras acaba sendo minimizada.

Quando o RDC foi instituído houve alguma polêmica por parte da oposição por causa do método adotado. Desde o início de 2011, o governo foi tentando impor o dispositivo de contratação de MP para MP até que finalmente conseguiu que ela fosse aprovada na 527, que criou a Secretaria de Aviação Civil. Após passar na Câmara e no Senado, virou lei no dia 4 de agosto do ano passado. A partir daí, o governo usou a mesma estratégia para estender o RDC para outras áreas. Em nenhum desses casos a MP original tratava do assunto. Também em nenhum caso houve grande mobilização contrária na base aliada ou na oposição.

A única reação a esse procedimento acabou surgindo das mãos de um deputado federal de primeiro mandato, Fábio Trad (PMDB-MS). Ele é integrante do grupo pemedebista “Afirmação Democrática”, formado para tentar recuperar a imagem do partido e tirá-lo da pecha de fisiológico e propor uma agenda ao país. É irmão do prefeito reeleito de Campo Grande, Nelson Trad Filho (PMDB).

Com base nos 135 projetos de lei que tramitam na Câmara com o objetivo de reformular a Lei de Licitações, Trad apresentou na semana passada um substitutivo cuja ideia é chegar a um meio-termo entre o RDC e a Lei de Licitações. Na elaboração do texto, teve acompanhamento do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji), ligado à PUC-SP. “Do RDC, o que absorvi mais é o conceito de agilidade dos certames e a simplificação dos procedimentos e a questão da sustentabilidade. Da Lei de Licitações, mantive a criminalização para os desvios, as cláusulas sociais; reforçamos o princípio da impessoalidade, eficiência, moralidade e incluímos os da proporcionalidade e da razoabilidade.”

Um ponto essencial do RDC, no entanto, foi excluído do seu substitutivo: a contratação integrada. O mecanismo permite que o mesmo fornecedor fique responsável pela elaboração dos projetos básico e executivo de engenharia. Pela Lei 8.666, uma nova licitação tem que ser feita a cada passo da obra. “A contratação integrada não nos convenceu de que sua agilidade superaria os riscos de desvios que oferece. No geral, a lógica nossa é que as virtudes da 8.666 e do RDC são muito mais vantajosas para a administração pública e para a sociedade do que o RDC isoladamente, porque há falhas no regime. Há uma simplificação extremada que compromete a lisura do processo.”

Ele espera que o projeto possa ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em 2013, para depois seguir ao plenário da Câmara. “A regra por enquanto ainda é a 8.666, mas o RDC caminha para solapar sua estrutura. O que propomos é estancar esse processo de desestruturação da 8.666 com um novo modelo de licitação”, afirmou Trad, defendendo que considera a Lei de Licitações muito positiva para ser derrubada sem um amplo debate.

Paralelamente às discussões políticas, o RDC também desperta dúvidas jurídicas. Augusto dal Pozzo, vice-presidente do Ibeji, cita o caso do orçamento sigiloso. O governo argumenta que, ao não divulgar o preço da obra previamente, consegue evitar conluio entre concorrentes e gerar mais competição. “Essa é só umas das aberrações jurídicas do RDC. A Constituição prevê o princípio da publicidade. Os valores são informações básicas que têm de ser de conhecimento de todos”, critica Pozzo. “Além disso, nada impede duas empresas de combinarem suas propostas. Esse argumento é vazio, não faz sentido.”

O vice-presidente do Ibeji chama a atenção ainda para eventuais riscos da contratação integrada. “Como é que passamos para a mesma empresa que fará a obra, a exigência de desenvolver os seus estudos de engenharia?”, questiona Pozzo. “O governo decidiu escolher um atalho, um caminho mais fácil para contratar obras públicas, mas isso não significa que é o melhor. Os contratos de RDC começaram a ser firmados agora e logo começaremos a ver os problemas. Estamos legitimando o planejamento mal feito.”

Para o governo, as críticas não colam. No mês passado, a Infraero publicou mais um edital de licitação pelo regime para contratar obras de ampliação e restauração no aeroporto internacional de Confins (MG). No Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o RDC é o novo mantra para dar jeito nas contratações de restauração e manutenção de rodovias federais. Para a Lei 8.666, progressivamente, sobram os penduricalhos.

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