Lincoln e Lula: Heróis em tons de cinza

Os homens* públicos capazes de mudar a história são, normalmente, revestidos de uma aura especial.  Herói é uma palavra normalmente empregada.
Mas, quando olhados de perto, os heróis não são feitos de apenas luz.  Muito mais que cinquenta tons de cinza os envolve na maior parte das vezes.  Os homens, heróis ou não, têm suas sombras.

Assisti na última segunda-feira o filme favorito ao Oscar, "Lincoln", de Spielberg.  E fiquei esses dias pensando nesse personagem heróico - mas cheio de sombras.
Como é possível fazer uma revolução social?  E fazê-la no meio de uma guerra?
Pense no personagem de Tommy Lee Jones. Thaddeus Stevens era um abolicionista radical.  Enquanto a maior parte dos que lutavam contra a escravidão falava em uma igualdade das raças formal, diante da lei, sem discutir a fundo a igualdade inerente a todo ser humano, Stevens defendia que de todos os modos imagináveis nenhuma raça é superior à outra.  Ele era uma voz minoritária.  O país levou um século entre a abolição e a igualdade de direitos civis da população negra.  Nesse caso, não importa que tenham sido necessárias apenas quatro décadas para que elegesse o primeiro presidente negro.
Ainda que pudesse haver simpatia às ideias de Stevens, era preciso fazer concessões.  Afinal, o objetivo principal era estrangular economicamente o Sul escravagista e vencer a Guerra Civil.
Sem sombra de dúvida, vencer a guerra e aprovar a 13a emenda, que proibiu a escravidão, fazem de Lincoln um herói - um herói de um humanismo que ultrapassa as barreiras nacionais do Império.  E isso ainda é mais sério se você imaginar que ele era republicano.
De que modo Lincoln aprova a emenda e vence a guerra?  A revolução a que se propôs - e que lhe valeu a vida - exigiu métodos das sombras.  Lincoln é um herói que corrompeu o Congresso para a aprovar a emenda que pôs fim a escravatura.  E é esse, talvez, o principal tema do filme de Spielberg.  Quando a influência do secretário de estado, William Seward, se esgota na cooptação do parlamento, o próprio presidente joga, pessoalmente, o jogo.  Hábil político, orador e contador de histórias, Lincoln não podia esperar.  E se arrisca pessoalmente na arena.
Lincoln não era um personagem só da luz.  Havia coisas que ele preferia que se mantivessem escondidas no seu jeito de se fazer política.
É evidente que um brasileiro não veria um filme desses, poucos meses depois de o espetáculo midiático do julgamento da Ação Penal 470, sem pensar na revolução social realizada pelo governo Lula.  Lula, talvez um herói do mesmo grau que Lincoln, fez concessões semelhantes.  Ainda que seja questionável a evidência probatória da existência do Mensalão, o PT nunca deixou de confessar uma prática de corrupção - o Caixa 2 - como forma de amealhar apoio político no Congresso.  Apoio sem o qual seria improvável que metade da revolução promovida chegasse a termo.

Lincoln serve para nos mostrar que não se fazem revoluções sem preço.  E que ser herói não é ser um ser de luz apenas.

P.S.: Paulo Nogueira reproduziu texto de Tariq Ali  em que o paquistanês lamenta que o filme de Spielberg não tratasse da suposta homossexualidade de Lincoln.  Confesso que foi esse texto que me apresentou à ideia, mas em alguns momentos do filme cheguei a suspeitar do carinho demonstrado pelo presidente a seu ajudante de ordens.  Em determinado momento, há, inclusive, uma mão segura de forma incomum.
O roteirista do filme é um ativista do movimento gay.  Não acho que tenha havido ocultação deliberada.  Talvez, a opção tenha sido tratar do tema de maneira clandestina - assim como há uma relação clandestina envolvendo Stevens, personagem de Tommy Lee Jones.  Nada é muito explícito na conduta do presidente.
No entanto, o recado quanto aos direitos civis dos homossexuais é mais direto: os séculos XIX e XX trataram da igualdade entre os humanos na perspectiva do negro [e da mulher].  O século XXI nos desafia a cumprir o que afirmamos crer sobre todos os homens e mulheres a respeito dos gays e lésbicas: são homens e mulheres que também têm direitos iguais e igualdade real e humana.  Inclusive para amar e ser amado.
* Tomei o termo "homem" aqui no sentido genérico de humanos, homens ou mulheres, fugindo um tanto da linguagem inclusiva.  Perdoem-me.

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