A velha classe média 2

Por Carlos Fialho
http://www.novojornal.jor.br/_conteudo/2013/03/opiniao/8070-a-velha-classe-media-2.php


Difícil dizer como perdemos alguns amigos de infância do nosso convívio. Certamente, vitimados pelas escolhas que somos levados a fazer neste imenso jardim de veredas que se bifurcam que é a vida. A certa altura, um amigo do peito escolhe uma carreira e você outra. Com isso, lá vão vocês para rotinas distintas, conviver com pessoas novas, cultivar hábitos e costumes ditados pela convivência diária de um grupo social que se apresentou como consequência do caminho percorrido. Os gostos pessoais também são determinantes na medida em que você pode frequentar esta ou aquela casa de lazer, comparecer a shows de bandas que toquem este ou aquele ritmo musical, ir a bares ou igrejas, peladas ou cinemas, restaurantes ou praias.

Porém, existem sempre os meses derradeiros de cada ano, quando o clima de confraternização universal nos leva a reencontros com velhas turmas de amigos e ex-colegas. Um almoço e dois jantares depois, pude matar as saudades de três turmas distintas que povoaram minha adolescência, fossem na escola, nas quadras de basquete ou campinhos de pelada, nos veraneios do litoral sul ou nas festas particulares quando tentávamos nos refugiar na cidade monocultora que nos asfixiava para ouvir um pouco de Rock clandestinamente, além de experimentarmos os primeiros goles de álcool.

Nestes novos encontros, cada um dos presentes veio cheio de histórias para contar. Alguns moram em outros Estados, outros se tornaram empresários, todos estão casados ou solteiros com filhos. Episódios de seus respectivos trabalhos, rotinas de suas casas ou cidades, gostos pessoais, desventuras ou boas experiências em viagens recentes. Planos para o futuro, muitos. Em todos os encontros, mantive-me sorridente, mas contido. Ouvindo bem mais do que falando, para saber das novidades alheias e dar vez aos amigos, mais desinibidos.

Confesso que fiquei feliz pelas diferentes formas de prosperidade que pude aferir a partir dos meus velhos companheiros. Não é inverídico ou exagerado dizer que todos prosperaram, cada um a sua maneira. No entanto, fiquei verdadeiramente intrigado com a inquietação deles. Meus amigos não pareciam satisfeitos ou plenamente felizes. Não estavam. Não estão. Algo os incomoda sobremaneira. Há um espinho oprimindo seus corações, pequeno, mas suficientemente incômodo de modo a causar-lhes uma permanente agonia. Percebi isto ao constatar que, logo após uma contextualização geral sobre a atual situação de cada um, as reclamações cotidianas sobre pequenos dissabores enfrentados emergiram em profusão.

Um deles me perguntou como eu suportava viver em Ponta Negra, bairro onde, segundo ele, só existem “gringos e putas”. Respondi que era melhor do que alguns locais mais nobres da cidade, frequentados pelos filhos delas. Todos rimos de minha espirituosa resposta e meu amigo disse que não mudei nada com os anos. Outro que trabalha viajando resolveu contar uma história. Iniciou assim: “Não tenho nada contra essas pessoas mais humildes poderem fazer sua primeira viagem de avião, mas...”. Ericei bem os ouvidos e me pus a absorver com atenção. Adoro ouvir anedotas que começam assim, pois sempre depois do “mas” costuma vir os maiores absurdos e preconceitos que um indivíduo pode conceber. Ele falou de dois homens que pegaram o mesmo voo que ele a Natal e não souberam se comportar “adequadamente” diante da esteira de bagagem do aeroporto, sendo necessário que o meu amigo aplicasse neles uma pedagógica lição de moral. Alguém comentou que leu um texto de Danuza Leão que tratava da situação de ter tanta gente de “nível inferior” viajando de avião. Claro que não faltou a onipresente expressão que finaliza toda e qualquer conversa sobre aeroportos na atualidade: “quero ver na Copa.”

A certa altura, a conversa se adensou e os presentes resolveram abordar o tema político. Um dos amigos, que também mora fora, comentou como Natal andava abandonada pelo poder público e que o “efeito borboleta” fora devastador. Confessou que não tem coragem de indicar que nenhum conhecido venha nos visitar, ante o estado das vias, calçadas e praias. Comentei que a cidade tinha perspectiva de melhoria de tudo isso, devido à mudança no comando obtida nas últimas eleições, mas que eu não tinha fé de que pudéssemos ter melhorias nas áreas mais significativas à população como educação e saúde enquanto os grupos políticos tradicionais comandassem. Como resposta, obtive: “vamos deixar de hipocrisia. Nós nunca precisamos de saúde pública ou escolas estaduais. Se a cidade estiver bonita e bem cuidada já é suficiente para nós e os amigos que venhamos a receber aqui.”

Ainda dentro do tema efeito borboleta, um dos amigos me perguntou por que eu havia escrito uma crônica contundente que se atribuía a um ex-secretário municipal, conhecido nosso de outrora. Em suas palavras, queria saber “o que é que eu ganho com isso?” Respondi que não ganhava nada. Pelo contrário, recebia constantes recadinhos via amigos em comum que eu compartilhava com alguns dos “personagens”.

Alguém na mesa comentou acerca do último escândalo político nacional estampado na capa de uma revista semanal. O mesmo que pedira para que eu não abordasse mais temas políticos a fim de constranger larápios, por não ganhar nada com isso, indignou-se contra toda essa roubalheira sem limites no plano federal e louvou os veículos de comunicação que têm fibra para denunciar essa sem-vergonhice. Eu mesmo, silenciosamente, louvei sua capacidade de indignação seletiva. Por fim, um dos presentes comentou sobre um texto de Arnaldo Jabor que falava de toda a situação caótica do país, essa baderna de distribuição de bolsas para vagabundos às custas de quem trabalha honestamente, tudo para que o partido do governo possa roubar desenfreadamente e manter funcionando sua máquina populista de corrupção.

Um dos mais gaiatos resolveu quebrar o clima de seriedade ao ver entrar no recinto um casal de homossexuais. Cutucou quem estava ao seu lado e falou: “olha os seus amigos chegando ali.” Fazendo expressão de que não tinha gostado, respondeu: “De jeito nenhum. Não tenho amigos dessa qualidade. Se o restaurante fosse meu, eles nem entravam!” Quase todos riram.

Após tais refeições animadas com velhos amigos, cheguei à conclusão de que faço parte da “velha classe média”. Somos indivíduos que já pertencíamos a esta casta superior da sociedade antes da chegada dos novatos vindos dos estratos subalternos e menos capitalizados. Não estamos felizes com as novas companhias. Gente sem berço que não sabe nem se comportar diante de uma esteira de aeroporto. Grupos que recebem dos governantes todas as benesses possíveis enquanto nós pagamos impostos insidiosos. Não estamos satisfeitos com a perda de privilégios como o de comer várias refeições por dia ou de viajar pelo país. Também não estudamos nas melhores escolas para ver pessoas “diferenciadas” ter acesso à educação de qualidade. Não foi para isso que nossos pais batalharam tanto. Eles queriam que nós prosperássemos, mas que fôssemos especiais, destacando-nos da multidão.

Somos jovens (ainda) na idade, mas velhos no pensamento, conservadores, reacionários, tradicionais, cristãos, zelosos da moral e dos bons costumes, fechados a novas ideias e caminhos, simpatizantes de uma direita patriarcal que tem como dever a proteção da sociedade a fim de impedi-la de cair no completo caos e na baderna desenfreada para onde alguns tentam conduzir este país. Arnaldo Jabor e Danuza Leão são nossos guias. Estamos prontos e dispostos a lutar a boa luta, a travar o bom combate, pelo bem dos nossos.
Amém.

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