Preto Zezé: O Dia em que Fui Sorteado na Roleta Russa da Violência de Fortaleza

Via Blog da Maria Fro
Publicado pelo Preto Zezé da Cufa, em seu facebook

Ontem, por volta das 19h, fui deixar minha companheira, sua filha e sua mãe num evento no bairro do Castelão.

Ao retornar, fui abordado por dois adolescentes armados, que se jogaram na frente do meu carro e anunciaram assalto!

Como vidro do meu carro é fumê, a primeira coisa que fiz foi ascender a luz e preparei o espirito, pois o assalto é um ato de expropriação mas a tensão de ambas as partes pode fazer esse ato terminar em tragédia!

O primeiro jovem, ficou na frente do carro, de arma em punho, parado numa bicicleta, o segundo veio até a porta do passageiro realizar o assalto.

Ao se aproximar da porta, o primeiro adolescente fez o de praxe, em voz alta , tentava me apavorar e me arrancar qualquer coisa que fosse, o que demonstrava sua insegurança e que o mesmo era novo no “ramo”!

Segue o diálogo:

- Bora porra! passa a carteira, celular , tudo que tiver, senão leva bala!

- Camaradinha, cabeça de gelo, vou abrir a porta pra você ver que tô na limpeza , certo?

Ele veio até a porta , que estava travada, com a arma a poucos centímetros da minha cabeça.

O outro moleque, se aproximava, enquanto o primeiro destravava ele mesmo a porta e prosseguia o assalto.

Pegou minha carteira, perguntou se eu não tinha laptop, mandou eu abrir o porta luvas e a baixar o vidro de trás.

Ao chegar perto, o segundo moleque, disse para eu nao olhar pra eles, assumindo o controle enquanto o que metia terror, vasculhava meu carro.

Percebendo que eles controlavam a situação, Tento argumentar:

- Ei, cumpadi, pode ficar gelo, que num tô armado, não! Também o Negu num tem muita coisa, tô meio debaixo de grana.

Eu estou meio rouco, com dificuldades de falar, não sei se eles interpretaram como estratégia minha para sensibilizá-los ou um caô para desdobrá-los!

O segundo moleque , que apontava a arma pra mim, começou me olhar, nessa hora vem todo tipo de pensamento, principalmente o pior, pois se aproxima a pior hora, onde pode terminar em susto e prejuízo financeiro ou em tragédia.

Deixei ele à vontade enquanto pensava na próxima abordagem! De repente ele grita :

- Ei macho, dispensa , bora sair fora. Tamu assaltando o Preto Zezé da Cufa!

Confesso a vocês , que isso já ocorreu algumas vezes comigo e outras pessoas da Cufa, mas sempre com a policia (e, acreditem, é tenso também), quando eu e meu parceiro Manelzin visitamos uma favela e fomos abordados pelos policiais do RAIO, mas isso é outra história!

Meio desanimado, o primeiro moleque cometa:

-Puta que pariu! O Negu tá com azar , hoje não sai nem o da merenda.

Olhei para ambos, agora com mais tranquilidade, e vi aqueles corpos magros, de armas na mão, pés e canelas cinzentas, roupas de marca da ciclone e pena, meio surradas, e perguntei:

- Ei pivete, vocês moram onde e me conhecem da onde?

- Eu conheço do show e do projeto lá no Barroso – responde, eufórico e contente como se nada tivesse ocorrido, o moleque da bike que me reconheceu!

- Eu conheço lá do Cecal, quando tu levou o Racionais, lá! O Negu tava preso respondendo 157, maior galera considera você e a Cufa lá dentro.

- Ei Preto, dá para desenrolar um rango ai pro negu? Aquela tia ali, vende pratin – pergunta o primeiro adolescente.

- Dá sim, mas eu não vou sair andando com vocês armados, dispensem as armas.

Nesse momento, uma menina , grávida, se aproxima e pega as armas e leva para dentro do barraco da favela.

Nos aproximamos da barraca, e disse para eles pedirem o que quisessem.

A tizianha se comportava como se nada tivesse ocorrido, como se eu fosse apenas mais um que caiu num pedágio e foi liberado por conhecer os donos do mesmo.

Sentamos a mesa, eu pedi uma água, os dois moleques sentaram comigo, e foram logo perguntando quando ir ter show, se dava para pedir ao Davi do Pantanal para mandar um alô para eles no programa de rádio domingo “e para os camaradinhas que estavam privados”, eu disse que sim, mas show ainda estava preparando, talvez só em julho.

Fui direto ao assunto com eles…

- Mah, vocês são doido é, batalhando aqui, isso aqui vai ser o lugar mais vigiado da cidade por causa da Copa, daqui uns dias e vocês já sabem qual o final do crime, cadeia ou cemitério.

- Preto, o negu tá ligado dessa fita aí, mas fazer o quê? Uma hora dessa aqui, num tem nada na área, se num fosse esse rango aqui ou a gente metendo as paradas (assaltando) a gente ia ficar no prejuízo hoje.

- Conheço vários caras que passam aperrei, mas tão dando a volta e tentando se manter longe da vida louca das ruas e do crime.

- Cada um sofre do jeito que escolhe, e a vida é curta, o negu tem que curtir enquanto dá , pois daqui a pouco como tu disse, cadeia e cemitério, respondeu o moleque da bike, de maneira serena e fria.

- Meus camarada, vou sair fora, pois tenho várias missões e amanhã viajo para Sampa.

- Valeu Preto, foi mau ai, vamos passar para os camarada aqui das áreas a placa do teu carro, para num dar essas mancada não.

- Parece carro de policia – brincou o moleque da abordagem.

Pois é, tô pensando pensando até de fazer uma campanha para evitar isso! E vcs macho, ve se larga as armas e vão procurar cuidar da vida, ela é massa, as vezes parece que não vale nada, eu já me senti assim, mas basta a gente ter uma oportunidade e alguém que a gente gosta, que as coisas muda.

- Pois Preto, arruma qualquer coisa ai para gente, os camarada da área me falaram que tu arrumou emprego para vários maluco nessas obra aí do Castelão.

- Quem arrumou foi o cara da Copa (Ferruccio). Fiz só o contato, mas os caras queriam sair, vocês querem?

- Todo mundo quer sair da vida bandida, Preto, falta pra onde. E o negu , num tem nem um 121 (homicidio) nas costas não, nem tá devendo nada na rua.

- Tá valendo, qualquer coisa eu encontro vocês, falo com o Piqueno e daí localizo vocês se algo aparecer. Tá limpeza?

- Valeu!

Nos cumprimentamos, e saí fora.

Na volta pra casa, vim pensando como é louca essa cadeia alimentar da violência, esses jovens, criminosos, na complexa, dura e contraditória realidade, são na verdade as principais vitimas, pois já chegaram no pior estágio da desumanização: perderam o amor à sua própria vida, logo, não se pode esperar deles amor à vida de ninguém, e infelizmente já prevejo o final deles, morrer antes dos 24 e passar a vida indo e vindo para a cadeia.

Fica a pergunta: o que fazer?

Comentários

Certamente, para matar o semelhante, é preciso já ter perdido o amor pela própria vida. Considero que há muito que estão no crime pelo crime (ele parece entender isto ao perguntar: "querem sair do crime?"), mas, certamente, a maioria é como descrito pelo autor do texto, ainda que nas entrelinhas da descrição da situação, de pessoa que já forma, pela falta de políticas públicas realmente inclusivas (no PIB do País, através de acesso a Educação de qualidade, moradia de qualidade, saúde de qualidade, de capacitação profissional e ao mercado de trabalho). Até quando, pergunto? Parabéns ao pessoal e sua organização não governamental. Como o AfroRegae, certamente conseguirão fazer muito, ainda que apenas parte, para mudar o máximo de realidades possíveis!
Certamente, para matar o semelhante, é preciso já ter perdido o amor pela própria vida. Considero que há muito que estão no crime pelo crime (ele parece entender isto ao perguntar: "querem sair do crime?"), mas, certamente, a maioria é como descrito pelo autor do texto, ainda que nas entrelinhas da descrição da situação, de pessoa que já forma, pela falta de políticas públicas realmente inclusivas (no PIB do País, através de acesso a Educação de qualidade, moradia de qualidade, saúde de qualidade, de capacitação profissional e ao mercado de trabalho). Até quando, pergunto? Parabéns ao pessoal e sua organização não governamental. Como o AfroRegae, certamente conseguirão fazer muito, ainda que apenas parte, para mudar o máximo de realidades possíveis!