#RevoltadoBusao: "Você sabia tu pode ser levado para delegacia por desobediência?", diz o PM a jovem que filmava sua ação
Não sei descrever o que estou sentindo. Sei que eu tenho lágrimas a correr enquanto escrevo.
Em 1964, meu pai era casado há uns poucos anos. Minha mãe tinha 19 anos. Cada um deles escreveu uma história que, afinal, foi a história de um sem número de heróis e heroínas, anônimos ou não, que se levantou contra o arbítrio e a barbárie que se levantaram no Brasil e encheram de trevas a vida do país por 21 anos.
E mais.
É que o país não quis exorcizar seus fantasmas e preferiu jogar tudo para debaixo do pano em uma anistia ampla, geral e irrestrita em 1979 - o ano em que eu nasci.
Tivesse sido outra a história talvez nossa polícia e nossos governos fossem mais democráticos e cidadãos.
É uma desonra à memória de gente como Rubens Lemos a ação da PM na noite de ontem em Natal. O Estado Democrático de Direito e a mais básica liberdade de expressão e o direito de acesso à informação foram restringidos de modo absurdo.
Cada novo vídeo que surge mostra mais o quão anti-democrática e até criminosa é a nossa polícia. Mais ainda, quem deu a ordem.
Mas não só o Estado e seu aparato repressor é responsável.
Parte da mídia hegemônica ainda é capaz de transformar vítimas em bandidos e algozes em cordeiros.
Digo isso à respeito do terrível papel desempenhado, como exemplo, pela InterTV Cabugi.
Neste post, já referi as claras distorções cometidas pela emissora no Bom Dia RN - com direito a infelizes palavras do âncora que sugeriu que os manifestantes hostilizavam a televisão porque tinham o que esconder. Em seguida, no off da matéria o repórter afirma que um estudante preso estava bastante machucado e alegara que a PM o havia espancado. O verbo "alegar" tem conotação negativa, enquadrando a notícia de maneira negativa - se alguém "alega" o sentido construído pelo leitor é, em geral, de que a alegação é falsa. O verbo "dizer" ou "afirmar" seriam mais "neutros", nesse sentido. Para completar, em nenhum momento a reportagem checa a denúncia de crime cometido pela PM - nem sequer pergunta aos policiais o que eles teriam a dizer sobre isso. De um ponto de vista ético e, também, de um ponto de vista técnico a matéria está incorreta.
Mas aí a situação chegaria às raias do inconcebível.
O colega Tiago Medeiros, no No Minuto, teve a sorte de acompanhar uma das entrevistas feitas pela InterTV na noite desta quarta-feira. Você, certamente, não viu sua íntegra ser veiculada. Além do relato claro e objetivo do que aconteceu (inclusive o manifestante não descarta que tivesse havido excessos por parte do protesto), há um posicionamento inacreditável da repórter.
É ela quem diz:
- Vocês tinham dispersado, muita gente tinha ido embora ..., diz a repórter.
- Muita gente ficou machucado? perguntou ela.
- Agora é lamentável, porque a gente acompanhou uma boa parte dessa manifestação e a gente viu que era uma manifestação pacífica, tranquila...
Por incrível que possa parecer, essa é a opinião da repórter da InterTV Cabugi.
Mas ela não cabia no relato, na história que a linha editorial do veículo havia definido para qualificar o movimento da #RevoltadoBusao. Ainda que a emissora tenha testemunhado que o movimento foi pacífico, tranquilo, ela não poderia contar essa história aos espectadores.
Isso me fez lembrar de um debate que mantive com o Major Correia Lima, comandante do 12o Batalhão da PM em Mossoró. Quando questionei o que ele achava dos abusos que os vídeos postados ao longo da noite mostravam por parte da PM, o major respondeu que não foi isso que a InterTV tinha mostrado. Agora fica evidente porque e como foi montada a história que a InterTV contou ao seu público.
O depoimento, na íntegra, está abaixo.
Mas esse não foi o relato que mais me impactou. Reproduzimos nos últimos dias os tempos mais sombrios da Ditadura Militar em nossa cidade, em nosso estado. Tempos de arbítrio, violência gratuita, tortura, censura e impedimento das mais amplas liberdades - inclusive a de falar.
O vídeo abaixo, de cerca de dez minutos, condensa grande parte do protesto da quarta-feira.
Por isso, flagra o momento em que a intermediação dos manifestantes impediu que uma das coisas mais arbitrárias que se pode imaginar acontecesse: um estudante ser preso por ter perguntado a um PM seu nome, uma vez que o policial não trazia sua identificação à vista, estando assim irregular.
Mas mostram outras coisas mais impactantes e que provam em que situação de risco e precária está nossa democracia.
Em um determinado momento, quando a PM avança sobre os estudantes nas proximidades do Portugal Center, vê-se que policiais se dirigem para o manifestante que está filmando com o intuito de impedí-lo. Em seguida, acontece o diálogo. Não saberia dizer o que eu senti, como jornalista, professor da área, pesquisador, militante pela democratização da mídia e o direito a informação. A vontade foi xingar.
- Você não está fazendo o que eu falei, né? Você sabia tu pode ser levado para delegacia por desobediência?, diz o PM, em claro ato de abuso de autoridade e confrontando a liberdade de expressão e o direito à informação previstos em nossa Constituição.
- Mas o que foi que eu desobedeci? Exista alguma lei que proíba isso [filmar a ação da polícia]?, pergunta o rapaz.
- Existe uma coisa de recomendação... eu posso fazer uma coisa para a sua segurança... o que eu estou fazendo é recomendando que você não tire fotos..., diz o PM, que demonstra não saber que está sendo filmado.
- Mas quem é que vai prejudicar a minha segurança? É você ou essas pessoas?, responde o manifestante. Logo em seguida, a gravação é interrompida.
Na parte final do filme, vê-se com mais nitidez um PM confiscando, ilegalmente, a câmera de um fotógrafo.
A PM não gosta de democracia. Quem lhe deu as ordens também não gosta.
A ilegalidade da apreensão das câmeras e da tentativa de impedimento de registrar o acontecimento é flagrante.
O coronel Araújo, comandante da PM, costuma se defender citando que a PM sempre age de forma legal, no uso progressivo da força. Não dá para acreditar que tantos abusos são cometidos por policiais militares à revelia da hierarquia. Se os PMs que tentaram impedir a filmagem ou confiscaram câmeras tomaram as iniciativas sozinhos, isso significa que o comando da Polícia perdeu completamente a autoridade frente a tropa, uma vez que essas ações não pareceram ser exceções. Difícil acreditar que o comando perdeu o controle da tropa.
Mais provável, como diz este relato, que alguém tenha dado a ordem.
E se alguém deu a ordem, as palavras de Geraldo Vandré voltam a representar o espírito da luta: "É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar".
Em 1964, meu pai era casado há uns poucos anos. Minha mãe tinha 19 anos. Cada um deles escreveu uma história que, afinal, foi a história de um sem número de heróis e heroínas, anônimos ou não, que se levantou contra o arbítrio e a barbárie que se levantaram no Brasil e encheram de trevas a vida do país por 21 anos.
E mais.
É que o país não quis exorcizar seus fantasmas e preferiu jogar tudo para debaixo do pano em uma anistia ampla, geral e irrestrita em 1979 - o ano em que eu nasci.
Tivesse sido outra a história talvez nossa polícia e nossos governos fossem mais democráticos e cidadãos.
É uma desonra à memória de gente como Rubens Lemos a ação da PM na noite de ontem em Natal. O Estado Democrático de Direito e a mais básica liberdade de expressão e o direito de acesso à informação foram restringidos de modo absurdo.
Cada novo vídeo que surge mostra mais o quão anti-democrática e até criminosa é a nossa polícia. Mais ainda, quem deu a ordem.
Mas não só o Estado e seu aparato repressor é responsável.
Parte da mídia hegemônica ainda é capaz de transformar vítimas em bandidos e algozes em cordeiros.
Digo isso à respeito do terrível papel desempenhado, como exemplo, pela InterTV Cabugi.
Neste post, já referi as claras distorções cometidas pela emissora no Bom Dia RN - com direito a infelizes palavras do âncora que sugeriu que os manifestantes hostilizavam a televisão porque tinham o que esconder. Em seguida, no off da matéria o repórter afirma que um estudante preso estava bastante machucado e alegara que a PM o havia espancado. O verbo "alegar" tem conotação negativa, enquadrando a notícia de maneira negativa - se alguém "alega" o sentido construído pelo leitor é, em geral, de que a alegação é falsa. O verbo "dizer" ou "afirmar" seriam mais "neutros", nesse sentido. Para completar, em nenhum momento a reportagem checa a denúncia de crime cometido pela PM - nem sequer pergunta aos policiais o que eles teriam a dizer sobre isso. De um ponto de vista ético e, também, de um ponto de vista técnico a matéria está incorreta.
Mas aí a situação chegaria às raias do inconcebível.
O colega Tiago Medeiros, no No Minuto, teve a sorte de acompanhar uma das entrevistas feitas pela InterTV na noite desta quarta-feira. Você, certamente, não viu sua íntegra ser veiculada. Além do relato claro e objetivo do que aconteceu (inclusive o manifestante não descarta que tivesse havido excessos por parte do protesto), há um posicionamento inacreditável da repórter.
É ela quem diz:
- Vocês tinham dispersado, muita gente tinha ido embora ..., diz a repórter.
- Muita gente ficou machucado? perguntou ela.
- Agora é lamentável, porque a gente acompanhou uma boa parte dessa manifestação e a gente viu que era uma manifestação pacífica, tranquila...
Por incrível que possa parecer, essa é a opinião da repórter da InterTV Cabugi.
Mas ela não cabia no relato, na história que a linha editorial do veículo havia definido para qualificar o movimento da #RevoltadoBusao. Ainda que a emissora tenha testemunhado que o movimento foi pacífico, tranquilo, ela não poderia contar essa história aos espectadores.
Isso me fez lembrar de um debate que mantive com o Major Correia Lima, comandante do 12o Batalhão da PM em Mossoró. Quando questionei o que ele achava dos abusos que os vídeos postados ao longo da noite mostravam por parte da PM, o major respondeu que não foi isso que a InterTV tinha mostrado. Agora fica evidente porque e como foi montada a história que a InterTV contou ao seu público.
O depoimento, na íntegra, está abaixo.
Mas esse não foi o relato que mais me impactou. Reproduzimos nos últimos dias os tempos mais sombrios da Ditadura Militar em nossa cidade, em nosso estado. Tempos de arbítrio, violência gratuita, tortura, censura e impedimento das mais amplas liberdades - inclusive a de falar.
O vídeo abaixo, de cerca de dez minutos, condensa grande parte do protesto da quarta-feira.
Por isso, flagra o momento em que a intermediação dos manifestantes impediu que uma das coisas mais arbitrárias que se pode imaginar acontecesse: um estudante ser preso por ter perguntado a um PM seu nome, uma vez que o policial não trazia sua identificação à vista, estando assim irregular.
Mas mostram outras coisas mais impactantes e que provam em que situação de risco e precária está nossa democracia.
Em um determinado momento, quando a PM avança sobre os estudantes nas proximidades do Portugal Center, vê-se que policiais se dirigem para o manifestante que está filmando com o intuito de impedí-lo. Em seguida, acontece o diálogo. Não saberia dizer o que eu senti, como jornalista, professor da área, pesquisador, militante pela democratização da mídia e o direito a informação. A vontade foi xingar.
- Você não está fazendo o que eu falei, né? Você sabia tu pode ser levado para delegacia por desobediência?, diz o PM, em claro ato de abuso de autoridade e confrontando a liberdade de expressão e o direito à informação previstos em nossa Constituição.
- Mas o que foi que eu desobedeci? Exista alguma lei que proíba isso [filmar a ação da polícia]?, pergunta o rapaz.
- Existe uma coisa de recomendação... eu posso fazer uma coisa para a sua segurança... o que eu estou fazendo é recomendando que você não tire fotos..., diz o PM, que demonstra não saber que está sendo filmado.
- Mas quem é que vai prejudicar a minha segurança? É você ou essas pessoas?, responde o manifestante. Logo em seguida, a gravação é interrompida.
Na parte final do filme, vê-se com mais nitidez um PM confiscando, ilegalmente, a câmera de um fotógrafo.
A PM não gosta de democracia. Quem lhe deu as ordens também não gosta.
A ilegalidade da apreensão das câmeras e da tentativa de impedimento de registrar o acontecimento é flagrante.
O coronel Araújo, comandante da PM, costuma se defender citando que a PM sempre age de forma legal, no uso progressivo da força. Não dá para acreditar que tantos abusos são cometidos por policiais militares à revelia da hierarquia. Se os PMs que tentaram impedir a filmagem ou confiscaram câmeras tomaram as iniciativas sozinhos, isso significa que o comando da Polícia perdeu completamente a autoridade frente a tropa, uma vez que essas ações não pareceram ser exceções. Difícil acreditar que o comando perdeu o controle da tropa.
Mais provável, como diz este relato, que alguém tenha dado a ordem.
E se alguém deu a ordem, as palavras de Geraldo Vandré voltam a representar o espírito da luta: "É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar".
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