Não foi o gigante quem acordou, mas o monstro autoritário e violento

Por Rosivaldo Toscano Jr
“Quem acordou não foi o Gigante, mas o monstro autoritário e violento. Fiquemos em casa hoje com o pequeno Hitler que vive em cada um de nós.”

Os comentários abaixo são rebus sic stantibus, isto é, refletem o que estou captando agora. São conclusões parciais. Espero estar errado. Torço por isso.
Participei do momento dos Caras-Pintadas, no início dos anos 90. Tínhamos uma bandeira concreta: havia sérias e fundadas acusações contra Collor. Havia denúncia feita pelo próprio irmão, dando conta de atos de corrupção pessoalmente praticados pelo Presidente da República. Mas não havia depredações e agressões nas nossas manifestações. Pintávamos e celebrávamos a democracia exercendo nossa cidadania. Os partidos estavam presentes porque fazem parte do jogo democrático. Os trâmites constitucionais foram seguidos e ele perdeu o cargo.
Esse movimento é diferente. É confuso, caótico As bandeiras iniciais foram se dissolvendo em um caldo difuso e contraditório. Fala-se na diminuição da carga tributária e, ao mesmo tempo, no aumento dos investimentos sociais (a conta não vai fechar). No fim da corrupção, mas, ao mesmo tempo, na deposição sumária de representantes eleitos, o que constitui corromper a Democracia. Ademais, o discurso anticorrupção é feito sem uma reflexão sobre suas seculares causas estruturais. Vira um pleito moralista, utópico, pueril, parcial e manipulável. E se deixa de lado a discussão da tão necessária reforma política. A grande mídia, claro, investe nessa fenda. Não vai querer perder a oportunidade de pautar as massas. E se interdite a voz de quem discordar do “discurso da verdade”.
Outra coisa. Não existe democracia sem partidos. A última vez que dispensamos partidos foi durante a ditadura militar. A formação democrática aqui é débil. Proibir a participação de partidos é menosprezar a democracia. O fascismo é assim, enxerga os opositores como inimigos e contra os inimigos vale tudo, inclusive a força. Cenas de intolerância e vandalismo se acentuaram hoje em São Paulo – contou-me o amigo Marcelo Semer.
Histeria. Triste ver o que ocorreu em Brasília. O Itamarati não é a Bastilha. Vi uma turba furiosa, caótica, sem propósitos em frente ao prédio que não fosse o de destruí-lo. Se, por um lado, foram proibidas as bandeiras dos partidos, as “bandeiras” simbólicas, em boa medida, não estão obedecendo ao jogo democrático. Já que não dá (por enquanto) para queimar o inimigo, queimar bandeiras é, simbolicamente, queimar o espaço em que se permite a diferença.
“Não vou nem pra direita e nem pra esquerda, vou pra frente”. Nada mais ideológico (alienado) do que uma frase dessa. Vai-se, sempre, ideologicamente, seguir um rumo, ainda que se pense que se está “indo em frente”. Não. “Eles não sabem o que fazem” (Zizek). Não existe um “ir pra frente” quando não se sabe o referencial. Isso é utopia e toda utopia projeta a imaginação para fora do real – em uma parte que é, também, parte nenhuma. Utopia (outro lugar) que é, também, ucronia (outro tempo).
A maior debilidade da utopia: no instante em que se apresenta, abre as portas para caminhos que podem ser piores do que os atualmente trilhados. Isso porque a utopia é ausente de uma reflexão de caráter prático e político sobre suas consequências na realidade existente e nas instituições – e do que Ricoeur denomina de “o verossímil de uma época determinada”. É um salto no escuro. Converte-se, então, em um tudo ou nada. O lado negativo da utopia, além do risco de retrocesso, é o de fuga das possibilidades factíveis. O de ansiar por uma realidade inverossímil e que, de tão distante ou irrealizável, impede os avanços possíveis. Um discurso cético – de contestação concreta – é muito mais realizável do que um niilista – de negação geral ou ruptura absoluta. Muitas vezes a utopia é o álibi perfeito para se desconstruir alternativas possíveis. Nesse sentido, é complementar e instrumental à ideologia no seu sentido negativo e opressor.
O filho de um amigo meu, de 12 anos, queria participar das manifestações de ontem. Os amigos da mesma idade disseram que ele teria que ir porque “como iria falar para os filhos dele que não participou?” E foi(-se). Ir por ir não quer dizer nada. Vivemos em uma época de liberdades públicas, mas não se conserta o país como quem leva um carro a uma oficina. “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”. Mudar para onde, se cada um, individualmente, quer levá-lo autoritariamente para um lugar diferente? “Vem pra rua que a rua é a maior arquibancada do Brasil” Só que o jogo aqui é jogado por todo nós. E a primeira regra do jogo é respeitar a existência de regras. Não se faz democracia renegando-a. O movimento se extrema. Não se sabe os resultados. Em todo caso, quanto mais extremado, menor sua racionalidade e a capacidade de diálogo aberto e respeitoso. Se continuar nesse crescente, a Democracia estará em risco. E isso não tem nada de utópico.
Quem acordou não foi o Gigante, mas o monstro autoritário e violento. Fiquemos em casa hoje com o pequeno Hitler que vive em cada um de nós. Reflitamos por um dia.


*Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é juiz de direito e membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

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