Sobre o que dizem as ruas

No site Carta Maior

Seria recomendável aos dirigentes políticos do campo progressista afastar o risco de reproduzir aqui os erros da esquerda espanhola que, inicialmente, criminalizou o 15-M e terminou falando sozinha nas últimas eleições. Também seria recomendável não outorgar, de forma alguma, às elites brasileiras uma capacidade de mobilização que ela não possui. Refutar a ideia de que os jovens estão nas ruas em função da mídia ou de qualquer tipo de conspiração das "elites" é o primeiro passo para não cair em um erro elementar. Por Vinicius Wu.

Por Vinicius Wu (*)

A forma menos adequada de buscarmos a compreensão de um fenômeno social complexo é a simplificação. Não encontraremos uma única motivação para os recentes protestos que se espalharam pelas principais cidades do país, se o procurarmos. Temos questões mais gerais e universais ao lado de outros muitos temas locais e setoriais. Há aspectos que aproximam os manifestantes de São Paulo aos do Rio e de Porto alegre e, outros tantos, que os distanciam.

O papel da internet e das redes sociais é central e, em geral, os políticos e formadores de opinião não o tem compreendido minimamente. Buscar algum grau de compreensão do atual fenômeno, a partir do ponto de vista de uma esquerda que se coloca diante do dificílimo desafio de governar transformando, é o objetivo desse breve artigo.

O que se pode dizer preliminarmente é que estamos diante de uma expressão política do novo Brasil. A revolução democrática, levada a termo pelos governos Lula, redefiniu a estrutura de classes da sociedade brasileira, incluiu milhões de brasileiros à sociedade de consumo e possibilitou a emergência de novas expressões culturais e políticas. Mas o inédito processo de inclusão social e econômica ainda é imperfeito, inconcluso e contraditório. As dinâmicas políticas decorrentes do processo massivo de inclusão social em curso ainda são imprevisíveis, mas algumas pistas são visíveis e exigem da esquerda brasileira uma reflexão mais adensada.

As conquistas sociais dos últimos anos vieram acompanhadas da despolitização da política, de uma onda conservadora que constrange o Congresso Nacional e paralisa os partidos de esquerda, distanciando, ainda mais, a juventude da política tradicional. Lembremos que, recentemente, tivemos manifestações espontâneas, em todo o país, contra a indicação de Marcos Feliciano à Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional. Na oportunidade, nenhum manifestante propunha o fechamento do Congresso ou a criminalização dos políticos. E o que fez nosso Parlamento enquanto Instituição? Nada. Esperou solenemente o movimento se dispersar. Frente à onda conservadora que estimula a homofobia, o racismo e a violência sexista, o que têm feito os partidos políticos? Os ruralistas de sempre se organizam no Congresso Nacional para anular os direitos dos indígenas e o que dizem nossos parlamentares progressistas?

Os dez anos de governo de esquerda no país nos deixam um legado de grandes conquistas, entretanto, há incerteza e imprecisão quanto aos próximos passos. Demandas históricas não atendidas carecem de respostas mais amplas. Além disso, novas questões sempre se impõem num cenário de conquistas sociais e políticas. Pois, se é verdade que os governos do PT incluíram milhões e possibilitaram acesso a inúmeros serviços antes inacessíveis, também é verdade que temos, em diversas áreas, serviços de baixa qualidade e, fundamentalmente, caros.

O transporte nas grandes cidades é um drama cotidiano para milhões de brasileiros. Temos pleno emprego em diversas regiões metropolitanas do país e, no entanto, ainda temos um oceano de precariedade e informalidade. E aqueles que ingressaram na sociedade de consumo nos últimos anos, legitimamente, querem mais: anseiam por cultura, lazer, mais e melhores serviços, educação de qualidade, saúde, segurança e transportes. São os efeitos colaterais de toda experiência exitosa de redução das desigualdades sociais e econômicas.

Evidentemente, há ainda o afastamento e o desencantamento com a política e os políticos. A denominada "crise da representação" não é um conceito acadêmico abstrato. O déficit de democracia e de legitimidade das Instituições políticas colocam em xeque a capacidade dos atuais representantes em absorver e compreender as novas dinâmicas sociais e políticas que se expressam nas ruas do país. Nossa jovem democracia corre o risco de caducar precocemente, caso não tenhamos êxito em ressignificá-la e reaproximá-la dos setores sociais mais dinâmicos.

Essas seriam algumas das questões mais gerais que aproximam os movimentos do Sul, sudeste e nordeste. Mas há ainda temas locais que incidem sobre dinâmicas especificas e mobilizam pessoas a partir de questões mais sensíveis a partir de sua vivência concreta nos territórios.

O Rio de Janeiro, por exemplo, se tornou uma das cidades mais caras do mundo. Há uma reorganização em grande escala do espaço urbano e há setores sociais que se sentem completamente alheios (e marginalizados) ao processo de "modernização" da cidade. Em São Paulo, temos uma polícia orientada para o uso desmedido e desproporcional da força e da violência – e isso não diz respeito somente aos dias de protestos. Também há ali um tipo de violência estrutural contra homossexuais e mulheres sem que o Poder Público organize qualquer resposta mais contundente. Poderíamos estender a lista.

Por fim, cumpre registrar que seria recomendável aos dirigentes políticos do campo progressista afastar o risco de reproduzir aqui os erros da esquerda espanhola que, inicialmente, criminalizou o 15-M e terminou falando sozinha nas últimas eleições. Também seria recomendável não outorgar, de forma alguma, às elites brasileiras uma capacidade de mobilização que ela não possui e jamais possuirá. Refutar a ideia de que os jovens estão nas ruas em função da mídia ou de qualquer tipo de conspiração das "elites" é o primeiro passo para não cair em um erro elementar que seria bloquear qualquer possibilidade de dialogo com esses novos movimentos.

Melhor acreditar que é possível extrair do atual momento elementos para a renovação da agenda da esquerda brasileira e reforçar os laços que unem os governos progressistas da América Latina a todas as lutas contra as diversas formas de privatização da vida. É hora de reforçarmos nossa capacidade de dialogo, de escuta, e ouvir a voz nada rouca das ruas – a mesma que nossos adversários sempre buscaram silenciar. Estamos diante de uma oportunidade singular para renovarmos nossos discursos e nossas práticas, projetando o próximo passo da Revolução Democrática no Brasil com base na força sempre renovadora das mobilizações da juventude.

(*) Secretário-geral do governo do Estado do Rio Grande do Sul

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